A cozinha da minha avó …

A casa da minha avó materna ficava (e fica) do outro lado do caminho mesmo em frente à casa dos meus pais e era frequente eu aparecer por “aquelas bandas” quando era criança, fosse para ir aos figos na figueira que pendia um pouco sobre a casa da Emilinha “Séria”, fosse para ir aos “ameixos de aparta caroço” que pendiam sobre a mata traseira, fosse por muitas outras razões. Mas as saudades ficaram-me mais da cozinha rústica com o lar de pedra onde o lume ardia quase todo o dia. Na lareira estava sempre uma grande panela de ferro de “três pés”, a “caldeira de água quente” daquele tempo, que já era um luxo. Dali tirava-se água quente para tudo pois não havia cilindros elétricos, esquentadores ou outras modernices para aquecer água e que só viriam a chegar à aldeia muitos anos mais tarde. Aliás, nem sequer havia água canalizada, pois na casa da minha avó, como na nossa, era tirada do poço, a princípio a balde puxado com sarilho e anos mais tarde tirada a motor elétrico, outra modernice, tal como a eletricidade, fraca e com muitas falhas, que nos obrigava a usar com frequência os candeeiros a petróleo, velas e candeias. 

Na cozinha da minha avó todos os netos gostavam muito de se sentar no “preguiceiro”, uma peça de mobília fundamental numa cozinha tradicional, espécie de banco comprido com “costas” altas onde nos recostávamos com os pés no “lar” bem perto do lume. Em madeira de pinho, para além das costas o “preguiceiro” tinha “braços” para apoio e, na zona central um pequeno tampo de madeira que fazia de mesa quando se baixava e apoiava numa haste de madeira, servindo para comer, jogar ou outra coisa qualquer. Ali sentados, gozávamos dos prazeres do fogo e ficávamos a ver as mulheres cozinhar. No meio da fogueira e ao lado da panela grande de três pés havia uma “trempe” feita em ferro onde colocavam panelas e tachos para cozinhar, fosse o caldo que nos era servido em grandes “malgas” de barro, fossem as batatas cozidas com casca que muitas vezes não tinham nada para acompanhar além de um fio de azeite já que o azeite era caro, com um pouco de vinagre tinto feito num grande garrafão com vinho do quintal e uma “tripa” que mais não era senão um aglomerado de bactérias acéticas necessárias à acidificação do vinho. No tempo das castanhas aproveitava-se a fogueira para as assar, depois de cortar um canto a todas elas para não rebentarem, atiradas para o meio do fogo onde ficavam enterradas na cinza. Ao ajudar a cortar os cantos das castanhas, de malandrice deixava ir algumas inteiras para depois ver as mulheres a assustarem-se (ou a fingir) com os rebentamentos no meio da fogueira, espalhando pequenos pedaços de carvão.

No inverno era crónico ver as mulheres com “murras” nas pernas como resultado de andarem muito tempo junto do lume com elas à mostra. As murras são manchas pouco persistentes causadas pelo calor do fogo e que causam algum desconforto. Como nós, homens, andávamos de calças, não tínhamos esse problema.

O canto da cozinha por detrás do preguiceiro era o espaço onde se “fabricava” o pão, mais concretamente a broa de milho. Ali estava o forno de barro aquecido a lenha e, ao lado, a “amassadeira”. O milho era de produção própria no Campo dos Morgadinhos ou noutro mais abaixo e moído pelo moleiro dos Moinhos. Gostava de ver a minha avó misturar a farinha com água quanto baste, fermento e um pouco de sal e amassar. Às vezes ela deixava-me “meter a mão na massa” e seguia com atenção as fases seguintes, desde o aquecer do forno, o retirar das brasas e cinza, o meter o pão a cozer e o tapar da porta do forno com fezes de boi. Mas a parte mais interessante era sempre a abertura do forno e a retirada das broas já cozidas. Tinha logo direito a um naco de broa quente que me “sabia pela vida”. 

No inverno, depois da matança do porco, a base do saco da chaminé ficava atravessada por três varas carregadas de salpicões e chouriças de sangue, além de presuntos e outras partes do porco a precisarem de ser defumadas depois de salgadas, para se conservarem. Às vezes tínhamos direito a provar para saber se estavam em condições de ser consumidas. Por nós, estavam sempre.

No Natal, com a “mesa” do preguiceiro montada, eu sentava-me de um lado e o meu irmão do outro e jogávamos o jogo do “rapa” usando um pequeno pião de quatro lados. Em cada lado havia uma letra: R (Rapa), T (Tira), D (Deixa) e P (Põe). Jogávamos a pinhões com casca que conseguíamos num pinheiro manso grande na mata atrás da casa da minha avó. Eu era perito a subir pelo tronco do pinheiro, agarrado à casca (nalguns, como só conseguia abraçar metade da árvore, era agarrado à casca rugosa que trepava) e apanhava as pinhas de onde extraía posteriormente os pinhões. Para começar o jogo, eu e o meu irmão colocávamos em cima da mesa do preguiceiro um pinhão cada e fazíamos rodopiar à vez o “Rapa”, o pequeno pião. Quando saía o R, “rapava” os pinhões sobre a mesa. O T dava direito a tirar um pinhão. O D era para deixar tudo como estava. E o P queria dizer que éramos obrigados a pôr lá um pinhão. E ali ficávamos horas seguidas a jogar, alternando com mais “jogadores” interessados. Quando fora de jogo, aproveitávamos para comer os pinhões ganhos a jogar, partindo-os com uma pedra sobre o lar. A Noite de Natal “convidava-nos” a ficar por ali logo a partir do almoço porque durante a tarde faziam-se as rabanadas de mel e os formigos, uma coisa fora do comum pelo que aguardávamos pacientemente para ver e “provar” aquelas doçuras que eram de “comer e chorar por mais”. E a espera valia a pena …

Estas memórias vieram-me à cabeça enquanto observava algumas crianças insatisfeitas com os diversos jogos que tinham para brincar e, mais tarde, resmungando diante de um lanche muito bem aviado. Fiquei a pensar que hoje valorizam pouco ou nada o muito que lhes é dado, grande parte das vezes sem terem necessidade sequer de pedir. É que os pais, no seu desejo de darem aos filhos tudo e mais alguma coisa do bom e do melhor, numa competição implacável com outros pais, sejam familiares, amigos, vizinhos ou simples conhecidos, fazem do brinquedo mais caro à gulodice mais sofisticada uma coisa comum e comum, que faz passar a mensagem errada aos “beneficiários” de que são coisas sem valor. E, para quem nem sequer teve de pedir, são mesmo. Pelo contrário, num outro tempo em que havia muito pouco, dava-se importância a tudo, nada se desperdiçava e ficava-se grato pelo que se recebia e tinha, fosse para comer ou brincar …   

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