Feliz de quem recebe “flores” em vida

O senhor Joaquim vive há cem anos na mesma aldeia de um concelho vizinho, de onde quase nunca saiu para ver o mundo, mesmo que o mundo fosse só o Porto ou Lisboa. Passou fome, viveu com inúmeras dificuldades, atravessou uma Guerra Mundial, uma Guerra Colonial e conseguiu que os seus cinco filhos e filhas sobrevivessem, ganhassem asas e tivessem (e ainda tenham) uma vida boa apesar de, para tal, terem emigrado para França, por onde se mantêm. E tudo isso foi conseguido somente com o fruto do seu trabalho de jornaleiro e com a ajuda da senhora Maria, sua mulher, que governou a casinha onde moravam na aldeia e cuidou dos filhos enquanto não “voaram” para a “estranja”, para além de cultivar o pequeno quintal de onde tirava as hortaliças para o “caldo”, até ser “levada pelo Senhor” já lá vai “um bom par de anos”. Ainda com a cabeça completamente coberta de cabelo, mas a quem o tempo pintou de branco como um sinónimo de experiência e sabedoria, todos os dias depois do almoço vai até ao ponto de convívio da aldeia, uma antiga “tasca” que os proprietários teimaram em “modernizar” batizando-a de “Café da Aldeia” apesar de quase só lhe acrescentarem meia dúzia de mesas e nenhumas obras, por onde fica quase toda a tarde em conversa com quem está por ali. E ele, como bom contador das muitas histórias de uma vida longa e intensa, alimenta com facilidade as tertúlias com amigos e vizinhos. Há dias recebeu a visita de um velho amigo, “rapaz” mais novo que ele, emigrante em França, mas que nos últimos anos tem vivido entre cá e lá, que não deixa de o visitar sempre que vem a Portugal nem de convidar e acompanhar ao tal “café” da aldeia onde passam horas a fazer o que melhor sabem: falar. Naquele dia sentou-se à mesa um dos filhos do senhor Joaquim, também ele emigrante em França, que assistia mais à conversa do que participava e ouvia o pai repetir com frequência “aqui o Manel é o meu maior amigo”. E, volta e meia, lá vinha mais um novo “aqui o Manel é o meu maior amigo”. 

Às tantas, o filho do senhor Joaquim perguntou-lhe: “Ó pai, porque é que está sempre a dizer que o Manel é o seu maior amigo”? E ele, sem desviar o olhar, respondeu: “Porque o Manel já me levou a França e trouxe duas vezes, deu-me cama e mesa em sua casa e levou-me a passear por aquelas terras que eu nunca vira, para além de me visitar e fazer companhia sempre que cá vem, coisa que nenhum dos meus filhos fez apesar de virem cá todos os anos nuns “brutos carrões” e mostrarem que “puxam bem” e a vida lhes corre de feição. Mas só o meu amigo Manel se lembrou de mim” …

Encontrei-me há dias com esse tal Manel e estivemos à conversa, embora não tenha sido tão prolongada como as que ele tem com o seu amigo. Vinha muito incomodado pelo comportamento da mulher de um seu familiar porque, enquanto no funeral fizera um espetáculo de dor e sofrimento, chorando e gritando desalmadamente em plena igreja, já na missa de sétimo dia apareceu feita “viúva alegre”, sem sinal de dor pela perda do marido, permitindo-se até contar anedotas nada adequadas à sua condição, quanto mais ao momento. “E eu sei bem como é que ela o tratou em vida”, acrescentou. “Já preparou um espetáculo de viúva cheia de saudades do marido para o Dia de Fiéis e Defuntos. É por isso que, apesar de respeitar a tradição, nesse dia não vou ao cemitério colocar flores na campa dos meus familiares. As “flores” dou-as às pessoas em vida” …

É no Dia de Finados que milhões de pessoas vão ao cemitério levar flores, rezar e acender velas ou lamparinas pelos seus entes queridos que morreram, numa romagem anual que faz viajar de muito longe quem não se esquece, sentida para muitos, uma mera formalidade a “cumprir calendário” para outros. Podia ser o “Dia da Memória” por levar a que muita gente não se esqueça por completo dos familiares e amigos que partiram nesta vida tão atarefada e de pressa, obrigando-os a recordar ainda que uma só vez por ano, porque há quem ali vá com mais ou menos regularidade prestar homenagem e cuidar do espaço e para quem o dia 1 de Novembro é só mais um dia. No meio rural como o nosso, também há quem “vire o bico ao prego” e veja no momento uma oportunidade para “fiscalizar” todos os túmulos do cemitério, julgar e condenar a família que não cuidou e alindou o seu, além de avaliar enquanto “jurados num suposto concurso de arranjos florais” quem teve os ramos de flores mais valiosos e de maior beleza, motivo de rivalidades e competições entre familiares, vizinhos ou conhecidos e matéria de comentários na aldeia durante a semana seguinte. 

Parece muito estranho ver algumas viúvas que foram tão maltratadas pelos seus homens e que neste dia não deixam de lhes levar arranjos florais vistosos. Será que é mesmo para homenagear o defunto, para lhes dar o seu perdão ou, pelo contrário, para agradecer a Deus o ter-lhes concedido a liberdade e o fim do martírio? Fica a dúvida …

O Papa Francisco não deixa de nos enviar numa das suas mensagens estas considerações: “O ser humano é estranho. Briga com os vivos e leva flores para os mortos. Lança os vivos na sarjeta e pede “um bom lugar para os mortos”. Afasta-se dos vivos e agarra-se desesperado a eles quando morrem. Fica anos sem conversar com o vivo e desculpa-se e faz homenagens se ele morre. Não tem tempo para visitar o vivo, mas tem o dia todo para ir ao velório do morto. Critica, fala muito mal e ofende o vivo, mas santifica quando ele morre. Não liga, não abraça e não se importa com os vivos, mas se autoflagela quando morrem. Aos olhos cegos do homem, o valor do ser humano está na sua morte e não na sua vida” … 

Será preciso perder para valorizar? Porque é que se passa a ser uma excelente pessoa e os elogios só aparecem depois de morto? Qual a razão por que só se recebem muitas flores já quando se não podem cheirar, olhar e apreciar? Estamos demasiado ocupados com a vida para “dar flores” aos vivos e só nos lembramos de o fazer quando eles já estão do lado de lá? Considero importante e indispensável a tradição do Dia de Finados como Dia da Memória que é para todos nós e a homenagem sincera que cada um faz aos entes queridos diante da campa ou jazigo onde estão depositados os seus restos mortais, expressa das mais diversas formas, seja através de um simples ramo de flores do campo, de uma vela ou lamparina acesa, de uma oração em silêncio ainda que diante da campa despida de enfeites para além da cruz, como um despertar de consciências para aqueles que se esqueceram deles, de tão presos e entregues à pressa dos dias. Pelo contrário, os arranjos e enfeites de flores e artefactos caros, mais não são do que vaidades expressas na arrogância do dinheiro ou na tentativa de aliviar as consciências pelas “flores” que se não ofereceram ao morto em vida. É notável como a jovem Anne Frank, com menos de 15 anos, percebeu bem a natureza humana ao escrever um desabafo no seu célebre Diário: “Os mortos recebem mais flores que os vivos porque o remorso é mais forte que a gratidão”.   
Razão tem o Manel quando diz que “as “flores” devem dar-se em vida às pessoas de quem gostamos, pela presença e companhia, a forma como as tratamos, lhe dizemos que as amamos e saberem que podem contar connosco”. Essas “flores”, sim, temos a certeza de que chegam diretas aos seus destinatários e os ajudam a suportar melhor esta vida terrena…

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