7 palmos de terra ou pira funerária?

Como diz o ditado, a morte é parte incontornável e única certeza que temos da vida. Por si só, já é um assunto cheio de mistérios e tabus que muita gente nem sequer quer discutir, embora todos saibam que é aquilo que os espera. A sociedade leva-nos a evitar falar sobre esse processo e a substituir a palavra “morte” por eufemismos. Deixamos de falar sobre a “morte” e de usar a palavra, trocando-a por outras similares. Em vez de “morto” dizemos “falecido”, o quando “está a morrer” vira a “muito doente” e o “morreu” trocamos por “partiu”, “faleceu”, “finou-se” ou “apagou-se”. A morte até é tão democrática, chega a todos por igual não deixando ninguém de fora, ora um pouco mais cedo, ora um pouco mais tarde. Para a maioria das pessoas é um tabu de que se não pode falar como se, com isso, a possamos atrair. A verdade é que todos nós deveríamos pensar nela com tranquilidade. Perdemos a imensa sabedoria humana de aceitar a morte de modo natural. Claro que já ouvi algo como: “Para quê preocupar-me com a morte se tenho tantos problemas para resolver primeiro em vida”? Já percebemos que temos menos medo da morte, mas muito mais de pensar nela.

José Barbosa da Mota era uma figura da minha infância que, traído pela mulher num tempo em que traição era caso sério, deixou a terra no Alto Minho e veio parar à minha aldeia onde sobrevivia fazendo biscates. Com muita antecedência comprou o caixão que tinha ao alto atrás da porta do palheiro onde vivia. Ele dizia-se “estar preparado”. 

As funerárias anunciam funerais em jazigos, sepulturas ou cremações e até funerais sociais, com serviço completo do tipo “tudo incluído”. Não sei se na lista há o serviço de bar. Além do mais, também vendem serviços para melhorar a apresentação utilizando a tanatoestética e a tanatopraxia, conferindo bom aspeto ao morto, se é precisa uma boa aparência para ser enterrado e comido. Ainda têm para oferecer o serviço de música no velório e funeral e os habituais arranjos florais.

A tradição, especialmente em zonas rurais como a nossa, envolve um caixão e uma sepultura, que alguns substituem investindo num jazigo mais ou menos pomposo conforme a bolsa e a vaidade, porque até na morte existe. Nalguns casos, a escolha do jazigo ou até da sepultura com prateleiras acontece pelo medo de “ficar enterrado”. Presumo que seja mais pelo receio de sentir “falta de ar” do que por ter medo de vingança da bicharada. É que se diz por aí que eles nos “comem” para se vingarem dos inúmeros seres vivos que matamos enquanto andamos por cá, tantas vezes sem necessidade … 

Mas, como é vulgar dizer-se, a tradição já não é o que era e os centros urbanos foram os primeiros a romper com ela também neste caso. E a ideia de enterrar o corpo perde força a favor da cremação. Quem diria! Durante anos andaram-nos a acenar com um inferno feito de labaredas imensas para onde seriam atirados os pecadores e agora, pecadores ou não, aceitam como ótima opção ser incinerado a mais de mil graus de temperatura, numa pira funerária moderna e eficaz …

O primeiro crematório remonta a 1925, mas viria a ser encerrado, a meu ver por “falta de clientela com medo de chamuscar o rabo”. Mas as voltas da vida e da sociedade fizeram com que a “falta de espaço nos cerca de 5.000 cemitérios”, a crescente dificuldade das pessoas em fazerem a “visitação aos cemitérios”, a “fácil acomodação do pote das cinzas em casa” e a maior facilidade no “despacho do assunto”, têm feito com que os “clientes da cremação” aumentem de dia para dia, sendo igualmente uma opção em crescimento mesmo nas zonas rurais como é a nossa.

Até 1963, para a maioria dos católicos a cremação não era opção a ter em conta, mas a partir daí foi autorizada pelo Papa João VI. Porém, foi necessário que a sociedade e as mentalidades se alterassem pouco a pouco para o processo vir a ser aceite, embora há algumas religiões que continuam a não o admitir. Mas ainda nos dias de hoje o enterro é a cerimónia de despedida mais popular e, à partida, tida por ser … a mais barata. Acontece com as famílias que têm jazigo ou sepultura, o que simplifica logo o processo. Caso contrário, para quem tiver de o comprar e lhe somar as lápides, flores e visitações ao longo de anos, a conta final pode ser outra.

A opção pelo enterro é uma decisão a ter em conta, especialmente quando a família quer ter um local para visitar quem morre e onde ir prestar homenagem. E as visitas são importantes para muita gente, embora uma maçada para muitas outras. Além disso, o enterro tem certo valor simbólico e é tradição. E a tradição e a questão religiosa têm muito peso, principalmente em certas datas.

Claro que a cremação tem vindo a ganhar clientes e, como tem custo superior, até já existem “planos funerários de financiamento” onde o slogan publicitário deveria ser: “Morra e pague às prestações, que nós o cremamos a pronto”. A família pode guardar as cinzas em casa sem necessidade de ir ao cemitério, ter jazigo ou sepultura, colocar flores, fazer manutenções e pagar taxas. E, se a vontade do falecido for que as suas cinzas sejam espalhadas nalgum lugar escolhido por ele, onde repousará conforme o seu desejo, terminam para sempre as preocupações da família no momento em que elas são espalhadas ao acaso pelo vento.

Fazemos parte da natureza como qualquer outro ser vivo e devemos voltar a ela quando morrermos tal como uma árvore que cai com o vento e se desintegra lentamente, libertando os nutrientes que a compõem e irão alimentar e dar vida a novas vidas. Por isso gostaria de ver o meu corpo devolvido à terra, não num dos nossos cemitérios onde todo o tipo de jazigos e sepulturas se atropelam como uma feira de vaidades, mas num tipo americano feito parque onde cada um tem uma cruz simples e uma placa identificadora, porque ali ninguém tem que ser maior que ninguém. E assim, à sombra duma árvore, o corpo seria devolvido à natureza, entregue a biliões de pequenos seres que o transformariam em elementos básicos da vida, num benefício para o ecossistema envolvente com reciclagem completa a favor de outros seres vivos, o que não acontece com a cremação.

De uma forma ou de outra, temos de nos dar por felizes se a morte, quando chegar, só nos puder roubar a vida …  

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