“Adoro Boatos. Descubro coisas sobre mim que nem eu próprio sabia”!

Um dia estava num grupo de amigos em amena cavaqueira quando chegou um outro e, sem mais, disse: “Acabo de saber que morreu o Afonso”. Fez-se silêncio para, logo de seguida se fazerem os comentários habituais: “Era tão bom rapaz”, “ainda há dias o encontrei e parecia vender saúde” e outros que tais. Como o conhecia bem e à família e nem sequer tinha ouvido dizer que ele estava doente, afastei-me um pouco e liguei para o número do Afonso a ver se alguém atendia. Atendeu-me ele. “Estás a falar do reino dos vivos ou já estás do lado de lá”, perguntei eu ao ouvir a sua voz? Era mais um a ser “morto” por um boato que veio não se sabe de onde, lançado por não sei quem, nem com que intenção.

Dizia Machado de Assis que “o boato é um ente invisível e impalpável, que fala como um homem, está em toda a parte e em nenhuma, que ninguém vê de onde surge, nem onde se esconde, que traz consigo a célebre lanterna dos contos arábicos, a favor da qual se avantaja em poder e prestígio, a tudo o que é prestigioso e poderoso”.

O boato, não passa de um comportamento infantil e de satisfazer um único propósito de alimentar o nada, num “diz que disse” sem nunca se saber quem foi que “disse” e sem saber o que dizia ou se falou só pelo prazer de inventar uma história para falar e gerar burburinho para ter assunto de conversa, regra geral sem “ter paternidade”. Pode ser também a forma de dizer alguma coisa sobre aquilo que não se conhece ou criar uma trama rebuscada e intrigante que desperte a curiosidade de quem ouve, se possível envolvendo alguém conhecido ou, melhor ainda, importante na sociedade. Para que tenha mais hipóteses de ser bem-sucedido, deve conter alguns elementos verdadeiros. Já António Aleixo dizia: “P’ra mentira ser segura/ e atingir profundidade/ tem que trazer à mistura/ qualquer coisa de verdade”. Ora, com a chegada das redes sociais e a coberto da liberdade e do direito à informação, o boato ganhou nova dimensão pela velocidade supersónica com que se propaga, aumentando mais ainda o interesse, perversão e até a maldade das mesmas.

Na lista dos maiores boatos, nem as figuras históricas escapam. Enquanto se dizia que “Adolf Hitler, supostamente, só tinha um testículo, também circulou que “a imperatriz da Rússia, Catarina II, a Grande, morreu quando mantinha relações com um cavalo”. Nem a família real inglesa escapou aos boatos, ao dizerem que “o príncipe Harry, não é filho do príncipe Carlos, mas sim de um oficial do exército, James Hewitt, com quem a princesa Diana teve um affair”. Entre os mais caricatos está o de que “a artista Jeniffer Lopez fez um seguro do seu famoso traseiro”, enquanto “Michael Jackson dormia dentro de uma câmara de oxigénio para viver até aos 150 anos” (ficaria bem longe). Mas a verdade é que, verdadeiros ou falsos, estes boatos espalharam-se por todo o mundo, a uma velocidade incrível.

Um boato, verdadeiro ou falso, fica para sempre na memória das pessoas e, mesmo quando acaba por ser desmentido como uma mentira comprovada, há sempre quem garanta que a história é verdadeira. Nesses casos, muitas vezes as pessoas visadas podem sofrer ao longo de muito tempo, como aconteceu com Laura, a cantora do grupo musical as “Doce”, com o boato que teria ido às urgências de um hospital de Lisboa depois de ter tido sexo anal com um jogador do Benfica.

Em Portugal, até a história está cheia de rumores, de que o mais célebre e duradouro foi o de D. Sebastião, morto na batalha de Alcácer Quibir, mas que se esperava ver regressar numa manhã de nevoeiro para salvar Portugal! Já de Carlos Paião, que nos deixou muitas músicas que ainda continuam a ser ouvidas com prazer, vítima de um acidente automóvel brutal, correu o boato que foi enterrado vivo porque “ao levantar as ossadas encontraram o caixão arranhado por dentro”, o que viria a ser desmentido pela mulher do cantor.

Vem isto a propósito do que me aconteceu recentemente. Logo pela manhã a senhora Ana desabafou: “Fiquei muito triste por saber que vai abandonar a Misericórdia e que até já lhe fizeram um jantar de despedida”. Como já nada me surpreende, levei o assunto para a brincadeira e respondi-lhe: “Sabe que eu ando a esquecer-me de algumas coisas de vez em quando. Se calhar, até me fizeram um jantar de despedida, mas confesso que não me lembro nada disso. Tenho de ir ao neurologista porque é um esquecimento muito grave”. No mesmo dia e passadas poucas horas, encontro um amigo que me disse algo parecido: “Então já deixaste a Misericórdia sem acabares os projetos que tinhas? Soube que já te fizeram um jantar de despedida. Não estava à espera que deixasses assim de repente o lugar”. Acabei por o remeter para os meus esquecimentos como o tinha feito da parte da manhã, mas fiquei intrigado como é que duas pessoas de freguesias distantes, que não se conhecem, ouviram falar de uma demissão que não aconteceu e ainda de um jantar de despedida em que ninguém participou, em que o ator principal era eu, sem que eu saiba de nada. Até me apetece utilizar uma frase conhecida: “Adoro boatos. Descubro coisas sobre mim que nem eu próprio conhecia”!

Boatos causam problemas há séculos. A questão é que antigamente não havia internet e outros meios para comprovar se era verdadeiro ou falso. No entanto, o problema atual é precisamente a internet, pois hoje, com as redes sociais, uma notícia pode espalhar-se muito rapidamente e tornar-se numa verdade sem nunca o ter sido. E, tal como naquela frase bem conhecida, a verdade é que “o … visado é sempre o último a saber”.

Há um velho ditado que diz: “Deves comprar o boato e vender as notícias”. E isso quer dizer, hoje mais do que nunca e fruto do elevado poder de difusão do boato ou aquilo a que chamam de “falsas notícias”, que temos a obrigação de escrutinar bem as “histórias que ouvimos ou lemos, tentando distinguir o que é verdade do que não passa de mentira.

Quando somos confrontados com uma informação nova e com impacto, tendemos a funcionar como uma “caixa de ressonância”, isto é, passando-a de imediato para outra ou outras pessoas, seja num “boca a boca”, seja no simples carregar de uma tecla para a fazer replicar não sei quantas vezes à velocidade da luz. Mesmo quando a informação parece exagerada ou estranha, nem sempre refletimos um pouco e paramos para pensar no que pode ou não ter de verdade e acabamos por ser agentes disseminadores de boatos, quase sempre sem consciência de o ser. Quanto menos questionarmos a informação e mais a passarmos para a frente, maior proporção ela ganhará. E é fácil, até porque nada se espalha com maior rapidez do que um boato. Já Winston Churchill dizia que “uma mentira roda meio mundo antes da verdade ter tempo de vestir as calças”.

Mas há momentos em que o boato não deve ser contestado, como é o caso: “Se correr o boato de que morreste, aceita-o bem, porque doi menos” … 

Casamento, essa sociedade difícil …

No casamento, a promessa de “até que a morte nos separe” é cada vez mais uma promessa que não vai ser cumprida pelos casais, pois está claro que o número de divórcios em Portugal continua a aumentar de ano para ano ao ponto de ter sido quase igual ao dos casamentos em 2020. Até parece que estão a dar ouvidos a Erasmo de Roterdão por ele um dia ter dito que se “deve respeitar o casamento enquanto é um purgatório e dissolvê-lo quando se tornar um inferno”. Este estado de coisas confirma a opinião de Albert Einstein quando nos dizia que “o casamento é a tentativa malsucedida de extrair algo duradouro de um acidente”. Porém, se alguém quiser ter mais chances de alcançar a felicidade, deve seguir o conselho de F. Nietzsche: “Se os esposos não vivessem juntos, haveria mais matrimónios felizes”.

No casamento enquanto as mulheres procuram uma relação de amor, os homens querem constituir uma família. Elas encaram a separação como consequência do fim do amor, enquanto eles, apesar da relação não ser um mar de rosas, acham que o divórcio não se justifica já que, bem ou mal, têm uma família. E estas diferenças, causa principal dos divórcios, provam que o sexo oposto é isso mesmo – “oposto”. Mudou a relação com os tempos: A fidelidade incondicional virou “enquanto se ama” e o juramento solene a “consciência do provisório”. Os álbuns de fotografias ganharam novos atores: padrastos, madrastas, meios-irmãos e outros que tais. Parte dos lares têm um dos pais ausentes e os avós criam e educam os netos e financiam os filhos. Na intimidade, a sexualidade libertou-se da reprodução graças aos anticoncetivos. A sexologia, antes uma perversão e até anormalidade, virou ciência. O prazer (ou sua promessa) passou a ser grande negócio, o imaginário sexual uma máquina de vendas. A sexualidade tornou-se pública e fez exibir o sexo através das redes sociais e meios de comunicação social. Homens e mulheres, se antes eram malcheirosos e sujos, hoje já são perfumados. No passado, muito castos, agora, nus e exibicionistas.

Será que Leonard da Vinci tinha razão ao dizer que “o casamento é como enfiar a mão num saco de serpentes na esperança de apanhar uma enguia”? Ou Arnaldo Jabor com: “O primeiro ano é o mais difícil. Os restantes, são impossíveis”? 

A democratização do divórcio, apesar de caro, tornou o casamento muito mais transitório. É que, ao fim de 3 a 4 anos, um e outro, dão o casamento por garantido: preferem dormir a ter sexo, passam horas a ver futebol ou telenovelas na televisão sem ter tempo para falar ou dizer sequer “amo-te”. Entram no modo “rotina”. Até a porta da casa de banho deixam aberta enquanto a usam. Então aos 5 a 7 anos, como já sabem tudo um sobre o outro e a atração sexual “cai em desgraça”, pensam ter um filho para salvar o matrimónio, se bem que a criança é um ser e não um “dispositivo de resgate”. Já dizia um humorista que “quando um casal de recém-casados sorri, toda a gente sabe porquê. Quando um casal com mais de 10 anos de casamento sorri, toda a gente pergunta porquê”!!!

Os humoristas brasileiros são sarcásticos sobre o casamento. Juca Chaves diz que “quando um homem abre a porta do carro à esposa, podemos estar certos de uma coisa: ou o carro é novo ou é o amante”. Chico Anísio defende que os “solteiros deviam pagar mais impostos. Não é justo que alguns homens sejam mais felizes do que os outros”. Já Tom Jobim: “Quando me casei, descobri a felicidade. Mas aí, já era tarde demais”. Também Nelson Rodrigues disse que “na Antiguidade, os sacrifícios faziam-se no altar. Atualmente, esse costume perdura”! 

Mas, o casamento é uma das maiores instituições da Humanidade. E,

apesar do aumento constante do número de divórcios, a maioria das pessoas continua a querer casar-se, ter filhos, uma família e manter uma relação heterossexual, monogâmica, estável e permanente. Ora, isso é tão verdade que, para muita gente, quando o casamento falha tenta de novo acreditando que ainda é possível. Dizia Pablo Neruda: “Casar segunda vez, é o triunfo da esperança sobre a experiência”. 

No entanto, hoje tudo conspira contra o casamento, sendo a própria sociedade que o deseja a criar condições antagónicas que “batem de frente” com a vontade de quem quer casar, a começar pela promoção do espírito individualista. Ora, é um “quebra-cabeças” querer fazer estimular o espírito de família quando se exalta o elogio do indivíduo e assim, os apelos à realização pessoal “chocam” com os sacrifícios necessários à vida a dois e criam expectativas incompatíveis entre si. O casamento significa obrigações, renúncia de objetivos pessoais em função da família, filhos, parentes, etc. … E é aí que, às vezes, “a porca torce o rabo”. Por isso compara-se o matrimónio a um submarino: Às vezes consegue flutuar, mas a tendência é afundar …  

Mas há mais dificuldades. A tradição fez do sexo algo pecaminoso e impuro, mas isso foi alterado para um liberalismo com o aumento de sexo pré-marital, vida sexual mais livre (em especial nas mulheres), menos preconceitos e maior exigência numa relação satisfatória. Este clima é promovido pelos meios de comunicação social, redes sociais e artes. Hoje não se compra um carro, assiste a telenovela, filme ou até programa de televisão para crianças sem que o apelo sexual esteja presente, tal como está no dia a dia a sensualidade e erotização e se vende a imagem de “festa” ausente de compromissos. É a contradição clara entre o casamento monogâmico indissolúvel e uma atordoante liberdade sexual, que torna difícil cumprir as regras da monogamia. Há também a emancipação feminina que procura igualdade entre homens e mulheres quanto à livre expressão sexual e à diminuição da chamada “dupla moral” que conferia ao homem amplas liberdades e muito poucas à mulher, o que significa uma crescente diminuição na diferença no número de relações extramaritais entre os homens e as mulheres. 

Além disso, vivemos na “era do descartável”: roupa, copos, refeições, eletrodomésticos, carros, ritmos de vida e moda, vêm e vão numa sucessão de “compra, usa e deita fora”. Esse conceito não ficou pelas coisas materiais e estendeu-se às relações pessoais. Assim, logo ao primeiro sinal de “defeito”, “todas” elas, indiscriminadamente, são consideradas “sem conserto” e têm de ser trocadas. É assim que a promessa feita diante do altar esbarra na atração para gozar sempre “novas paixões arrebatadoras” e torna-se igual à promessa eleitoral dum político que, quando é eleito, sabe que dificilmente consegue cumpri-la.

É claro que o casamento é uma sociedade muito difícil e exige amor, compreensão, cedências, sacrifícios, paciência e inteligência. Ela não deve pensar que ele é nojento só porque se “peida” e tem de conviver com isso porque vai acontecer muito. Aliás, antes de casar com ele devia ouvi-lo mastigar e, se vir que consegue aguentar esse barulho, vá em frente com o casamento. E ele não a deve considerar patética só porque é obcecada pelas cores da pele, tinta das unhas, manicure, esteticista, cabeleireira, dietas, além de milhentos produtos de beleza que ocupam quase toda a casa de banho. É que, homens e mulheres, são assim mesmo. O resto, é conversa. Quer um conselho? Case e vai ver que “o casamento consegue fazer de duas pessoas uma só. Mas o difícil é determinar qual delas será” … 

Por isso, dirigido aos homens vai um conselho do “outro” Sócrates: “Certamente, casa-te. Se conseguires uma boa esposa, serás feliz; se apanhares uma ruim, tornar-te-ás um filósofo”.

Está na hora de saber como ficar rico

Pelo número de ricos que há em Portugal percebemos que se lê muito pouco neste país. É verdade, se fossemos leitores assíduos e atentos a tudo o quanto está publicado sobre “como ficar rico”, tínhamos mais hipóteses (e até obrigação) de chegar àquele patamar sonhado pela maioria dos que querem ser “podres de rico”, para se darem ao luxo das extravagâncias que criticam nos que já o são. Mas uma coisa é ser “um homem rico” e a outra “um rico homem”. As duas são diferentes, embora saibamos bem qual delas é a preferida pela maioria …

Mas, se é um dos que sonha chegar um dia ao clube dos ricos ou até ao de milionário, vá a uma livraria e compre “A ciência de ficar rico” porque o autor, depois de décadas a estudar a mente humana, veio a concluir que uma atitude positiva faz milagres. E o milagre pode vir a acontecer consigo! Se quer conseguir chegar ali num ano, tem o livro “como ficar rico ou não em 12 meses”. Há os que dizem que, para se subir financeiramente, tudo começa na mente. Assim, vá lá e compre “Pense e fique rico” ou “Pense rico para ficar rico – As 4 regras de ouro para ter sucesso nos negócios”, já para não falar de “Os segredos de uma mente milionária”. Mas há muitos mais livros e só precisa de consultar o “dr. Google” para encontrar outros títulos como nos casos “o milionário mora ao lado”, “trabalhe 4 horas por semana” ou ainda “dinheiro: os segredos de quem o tem”, para além de uma vasta gama de títulos sobre o tema onde encontra tudo aquilo que precisa para seguir o caminho dos milionários. Um dos autores afirma até que o conselho mais perigoso que se pode dar a um filho será: “Vai para a escola, tira notas altas e depois procura trabalho seguro”. É que agora não existe emprego garantido para ninguém, nem sequer para o filho do patrão. 

Numa utilização perversa da mente, “os que não sabem governar-se são precisamente os que mais ambicionam governar os outros”. Ora, o brasileiro conhecido por Marquês de Itararé dizia que “os vivos, são e serão sempre cada vez mais governados pelos mais vivos”, o que só vem confirmar a teoria anterior. Esta pode ser também uma via, um tanto alternativa e nada ortodoxa, para ficar rico. Apesar de não vir no manual de instruções, sabe-se que nas últimas décadas tem sido o caminho percorrido por muitos “candidatos” para atingir o tal “nível de vida” que todos gostariam de ter, caminho esse que normalmente é iniciado nas “Jotas” (ou não) e depois é tudo questão de expediente, espírito alpinista e oportunismo, além duma ambição desmedida na escalada à “torre do dinheiro” …

Nesta coisa de querer acumular muita massa, os mais conservadores dão como conselho aos que querem chegar a rico para “trabalharem muito, ganhar bem e gastar muito menos do que ganham. Sempre”. Já Henry Ford dizia: “Não nos tornamos ricos graças ao que ganhamos, mas com o que não gastamos”, sabedoria que se perdeu no tempo.

Quando se está sempre de roupas novas, trocando de smartphone, computador e automóvel a cada seis meses, esbanjando naquilo que é tido por supérfluo, vale a pena perguntar: “O dinheiro sobra-lhe”? Noutras palavras: Embora seja tentador comprar luxo e viver uma vida de rico (já sei que somos todos merecedores), fechar os olhos e ir em frente pode empurrar qualquer um para as chamadas “ciladas financeiras”, como é o caso dos empréstimos fáceis, mas com juros altos e que até exigem pagamentos adiantados. Se quer mesmo vir a ser rico, comece por viver dentro das suas possibilidades, pois gastar o que não se tem pode descambar e ser perigoso. E não se esqueça de ganhar dinheiro para subir até ao clube dos tais a que quer pertencer.

Todos os livros não deixam de acrescentar uma outra recomendação: “Tanto ou mais difícil do que conquistar riqueza, é conseguir mantê-la”, porque não é rico quem mais ganhou, mas quem mais poupou. E qualquer um pode comprovar a veracidade deste último conselho, bastando olhar para o que se passa à sua volta. Verá os exemplos que sobram bem perto de si, de gente que muito teve e que deixou que a fortuna se lhe escapasse facilmente, não seguindo tal recomendação. Fizeram rigorosamente o contrário, optando por gastar mais do que ganhavam como se não houvesse amanhã nem fundo no saco. As consequências disso deram na eterna pergunta: “Como foi possível”?

Uma das últimas estatísticas dava os Estados Unidos como o maior produtor de milionários do mundo e julgo não haver dúvidas de que continua a ser o melhor país para se sonhar e concretizar esse sonho. Os últimos dados dizem que há lá quase vinte milhões de milionários (6% da população), enquanto na China não passam dos cinco milhões (0,3% da população). 

Quanto a Portugal, dizem que temos cerca de cento e vinte mil milionários (1,2% da população). A nossa fábrica de fazer ricos, sendo proporcionalmente melhor do que a chinesa (que tem vindo a crescer), se comparada com a americana não é grande coisa, pois desde 74 fizemos mais questão de tentar acabar com os ricos (ou, pelo menos, reduzi-los), em vez de optarmos por querer acabar com os pobres. Não sei quem faz parte da lista nacional, mas, sem qualquer falsa modéstia, gostava que o meu nome também lá estivesse. Não propriamente pelo que isso queria dizer ao nível da minha conta bancária e das benesses a que me podia permitir, mas só porque, desde que me casei, o meu nome completo, com morada e até número de telefone, sempre esteve presente na lista mais conhecida do país: A Lista Telefónica. Por isso, sinto-me assim como que “órfão de listas” desde que deixou de ser publicada. Ora, se agora fizesse parte da lista dos mais ricos de Portugal, podia imprimi-la em papel couché a 350 gramas, com brilho e friso dourado, para a exibir como se fosse um diploma. Dava-me outro estatuto. Sim porque a “massa” tem um poder tal que até consegue transformar um “grande traste” num homem cheio de virtudes e de quem (quase) toda a gente quer muito ser “amigo do peito”. E vá-se lá saber porquê … 

Para quem resolver deixar de ser preguiçoso e dedicar-se desde já à leitura para conseguir encontrar o caminho da riqueza, só faço uma última recomendação que deve ter presente ao longo da luta que vai empreender e que nunca deverá esquecer para não pensar que ser rico tem todos os privilégios e mais um. Não, não tem. Por isso, não desanime. Porque os ricos, por mais ricos que sejam, não conseguem comer mais por isso. E, lembre-se sempre que os tais ricos … também morrem. Ou pensava que não?

Sou avesso às redes sociais …

A internet tornou-se essencial nas nossas vidas e as redes sociais criaram um espaço infinito na circulação livre de ideias e opiniões e podem ser grandes aliadas se bem utilizadas. A sua importância é inegável pois estão cada vez mais presentes na vida das pessoas de todas as idades, raças e credos. Diz-se que é praticamente um vício coletivo, uma mania universal. E até as empresas tiveram de aderir e mudar a sua postura para “fazer pela vida.

Durante o jantar um conhecido perguntou-me: “Posso ser seu amigo no facebook”? Respondi: “Não, não pode”. E calei-me. Mas para não o deixar a pensar no que não devia, concluí: “Não, porque eu não uso as redes sociais”. Então expliquei que o meu filho mais velho até chegou realmente a “abrir-me uma conta” no facebook, mas nunca acedi a ela e nem quis nem quero saber como o fazer. Diria que tenho uma certa alergia, mas vivo e convivo bem sem elas, apesar de ser questionado de vez em quando por não as usar, como se fosse um extraterrestre.

Provavelmente serei considerado um “troglodita” por me recusar a usar uma ferramenta que é considerada fundamental e indispensável a qualquer cidadão de hoje, mas não me importo de correr esse risco. Nunca postei fosse o que fosse, a que título fosse, sentado no sofá ou diante das Cataratas do Niágara, porque acho ser um absurdo expor a vida pessoal nas redes, quer sejam fotos, suas ou de familiares, nas mais incríveis posições e “figuras”, mostrar a casa, o que se faz, por onde se anda, com quem e como se anda, do que se gosta, onde se foi hoje, se vai logo e amanhã, correndo riscos que nunca se sabe onde começam e muito menos onde acabam. Mas há milhões e milhões de pessoas que o fazem todo o dia como sendo a coisa mais importante das suas vidas (se calhar é), numa dependência que já não controlam. Compreendo a necessidade que as pessoas têm de ser ouvidas, vistas, sentir o “afago psicológico” dos “likes” para os quais muitos vivem e de que sentem falta se os não recebem. De certa forma, é um modo de nos coçarmos uns aos outros ou da satisfação de sermos ouvidos. O ser humano tem a necessidade constante de receber atenção, mesmo que esta venha de desconhecidos, sendo uma das razões do sucesso das redes, que acabam por nos dar uma falsa sensação de que somos importantes para alguém pelas tais visualizações, “likes” e postagens. 

O escritor italiano Umberto Eco escreveu: “As redes sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que, antes, falavam só no bar depois dum copo de vinho sem causar qualquer dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um vencedor do Prémio Nobel”. Nas poucas vezes que me dei ao trabalho de ler as opiniões dos participantes na discussão de um ou outro tema, é incrível como qualquer ignorante se permite emitir opinião sobre aquilo que desconhece. Se o assunto é sensível, como é o caso especial da política, futebol ou religião, os ânimos exaltam-se, a conversa rapidamente vira insulto e agressão verbal, num “chiqueiro virtual” em que a única coisa que se pode aprender é a ser grosseiro, mal-educado, provocador e estúpido. 

A internet e as redes sociais tornaram-se muito importantes, mas, a reboque, aí se instalaram “tribunais instantâneos” onde tão depressa se fazem heróis como afundam reputações, tantas vezes sem nada ter a ver com a realidade. Ali tanto se pode encontrar gente boa, sábia e brilhante, como estúpidos, maldosos, quando não criminosos e o que se toma por inocente pode virar um problema sério, especialmente pelo excesso de exposição pessoal. A exposição exagerada não tem causado só problemas de segurança com golpes, violência, fraudes e até sequestros, como tem gente que, por postar mais do que devia, acabou por perder o emprego, amigos ou foi parar a tribunal.

Um programa televisivo brasileiro montou uma tenda num shopping onde selecionava pessoas para uma consulta com um falso “guru”. A curiosidade fez com que muita gente se inscrevesse, fornecendo os dados de identificação. Enquanto aguardavam pela “consulta” com o “guru”, um grupo de assistentes do programa acedia às redes sociais para pesquisar todos os detalhes sobre a vida pessoal de cada um dos inscritos. Era assim que o falso “guru”, com um pequeno auscultador no ouvido, recebia as informações sobre cada um e desempenhava o papel de “visionário”, deixando-os de boca aberta e perplexos com o grande número de detalhes revelados pelo “guru”, chegando a ficar emocionados. E no final, já informados pela realização do programa que todos os dados sobre as suas vidas haviam sido recolhidos nas redes sociais, ficavam surpresos e assustados pela grande exposição, bem como pela consequente falta de privacidade e segurança.

De forma geral, toda a gente sabe (ou devia saber) que a internet não é o lugar mais saudável do mundo. Através das redes sociais ela criou espaço para comunidades e trocas incríveis, embora em simultâneo tenha dado vazão à intolerância e discurso do ódio. O seu poder é tão grande que consegue a rápida mobilização de pessoas concentradas num determinado evento ou objetivo, seja para o bem ou para o mal. Foi assim com a “Primavera árabe”, como tem sido em muitas outras mobilizações e movimentos cívicos. 

Vale a pena refletir um pouco sobre o poema bem-humorado do poeta brasileiro Braulio Bessa:

“Lá nas redes sociais, o mundo é bem diferente. Dá pra ter milhões de amigos e mesmo assim ser carente. Tem like, a tal curtida, tem todo o tipo de vida, pra todo o tipo de gente. Tem gente que é tão feliz, que a vontade é de excluir. Tem gente que você segue, mas nunca te vai seguir. Tem gente que nem disfarça, diz que a vida só tem graça, com mais gente a assistir. Por falar nisso tem gente que esquece de comer, jogando, batendo papo, nem sente a fome bater. Celular virou fogão, pois no toque de um botão, o rango vem pra você. Mudou até a rotina de quem se está alimentando. Se a comida for chique, vai logo fotografando. Porém, repare, meu povo: quando é feijão com ovo não vejo ninguém postando.

Esse mundo virtual, tem feito o povo gastar, dividir rolos de massa, ir prá festa, viajar e, claro, mais importante, que é ter distante, distante, um retrato para postar. Tem gente que vai pró show, do seu artista preferido. No final volta pra casa, sem a nada ter assistido, pois foi lá só pra filmar. Mas pra ver no celular, nem precisava sair.

Lá nas redes sociais, todo o mundo é honesto e contra a corrupção, participa no protesto, porém sem fazer login, não é tão bonito assim. O real é indigesto: Fura fila e não respeita, se o sinal está fechado, pensa corromper o guarda, quando está a ser multado. Depois quando chega a casa, digitando mete brava, criticando o deputado.

Lá nas redes sociais, a tendência é ser juiz e condenar muitas vezes, sem saber nem o que diz. E não é nenhum segredo, que quando se aponta o dedo, voltam-se 3 pró seu nariz. Conversar, por exemplo, conversar pra uma cela, é tão frio, tão esperto, prefiro pessoalmente, pra mim sempre foi o certo. Sou a meio disto, pois junta quem está distante, mas afasta quem está perto.

E os grupos? Tem grupos de todo o tipo, com todo o tipo de conversa, com assuntos importantes, e outros que não interessa. Mas tem uma garantia, de receber durante o dia, um cordel de Braulio Bessa. E se você receber, esse simples cordel, que eu escrevi à mão, num pedaço de papel, que tem um tom de humor, mas no fundo é um clamor e um pedido pra viver: Viva a vida e o real, pois a curtida final, ninguém consegue prever”. 

Um estudo dizia que não devemos …

Em criança, nenhuma comida tinha rótulos negativos. Podia-se comer de tudo sem qualquer restrição, desde que houvesse. Carne de porco? Toda, a começar pela “caluba”, carne gorda com cinco centímetros de altura ou mais, salgada e defumada. Uma delícia. Rojões? Os melhores eram os mais gordos, especialmente os “rojões do redenho”. Leite de vaca? Bebia-o em natureza mal saía da teta do animal ainda morno. E as doenças? Nada nos privava de beber ou comer aquilo que era tido por “comestível”. Desde bem cedo todas as crianças bebiam vinho às refeições, sempre que havia. Até as mães para calar os bebés quando choravam muito enfiavam-lhes aguardente na boca numa “boneca” (guardanapo ou um pedaço de pano enrolado a fazer de chupeta em que se punha um pouco de açúcar ou … aguardente), além do “mata-bicho” para os homens ou não, com broa bem regada a aguardente. Em resumo, toda a comida era boa para a saúde, por ser natural!!! Quase sempre só havia um problema: era pouca. E hoje? Todos os dias estamos a ser bombardeados com estudos, ensaios, informações e recomendações técnicas de numerosos e reputados nutricionistas, analistas e estudiosos de todo o tipo, a proibir, condicionar e avisar sobre os malefícios dos mais variados alimentos sólidos e líquidos, deixando-nos entre a “espada e a parede” sem saber se comer ou não ponderados os prós e os contras, como “o tolo no meio da ponte”. Já para não falar nos “estudos encomendados” por empresas com fins muito duvidosos, numa guerra de interesses que se tenta combater com base em “suposta ciência”. Assim se promove os “leites de soja” e outros do género em prejuízo do leite de vaca, a cerveja a desfavor do vinho, as margarinas contra os interesses da manteiga e por aí além, “vendendo-se” teorias a favor de quem paga mais. 

Adaptando o texto de um autor anónimo e parodiando esta moda de que, agora, toda a comida é muito perigosa para a saúde com base em “supostos estudos” de “pseudocientistas”, não posso deixar de sorrir e concordar com ele:

“A semana passada deixei de comer chouriços. E presunto. E fiambre. E mortadela!!!” São alimentos processados, fumados, perigosos para a saúde, dizia o estudo duma revista médica. “Esta semana deixei de comer queijo. “Afeta a mesma molécula que as drogas duras”. Eu não quero ter nada a ver com isso, nem ser associado a drogas por muito que goste de queijo. Acabou-se com o queijo cá em casa” …

“O mês passado deixei de beber vinho branco. Um estudo dizia que fazia mal a não sei quê. Se calhar era cancro. Passei a beber só tinto que, dizia um estudo, era ideal para uma série de coisas. Esta semana voltei a beber branco porque, entretanto, saiu um estudo a dizer que, afinal, o branco até tem propriedades que fazem bem e muito tinto é mau. Comecei a reduzir no tinto talvez a pensar no hemorroidal, mas, acho que compreendem bem, não quero morrer assim de qualquer maneira.

Cortei nas azeitonas também, pois o estudo dizia que têm demasiada gordura, são muito insaturadas ou lá o que é e não parece nada bom. Andava quase só a peixe até perceber que os portugueses comem peixe a mais e são, por isso, prejudiciais ao meio ambiente. E como eu não quero ser acusado de inimigo do ambiente, ando a cortar o peixe também, em especial no atum: está cheio de chumbo. E no bacalhau também por causa daquele estudo que saiu sobre a quantidade de sal, mas, também, acho que compreendem, não quero morrer de qualquer maneira.

Esta semana saiu um estudo a dizer que, afinal, o vinho em geral, faz mal. Fiquei devastado. Há dois meses foram as couves roxas. Vi até um especialista na televisão dizer que não devíamos comer nada cuja cor seja roxa: “É sinal que não é para comer”, dizia. Arroz também quase não porque engorda e saiu um estudo a dizer que implica com uma função mais ou menos delicada. Não é a reprodutora já que essa é com a soja. Dá hormonas femininas aos homens fazendo crescer as mamas (o raio da soja!) e prejudica todas as funções. Por isso, soja nem pensar.

Leite já me livrei dele há muito. Foi, salvo erro, desde que um estudo veio dizer que o nosso corpo não está preparado para leites doutros animais. E porque a gente pode ganhar intolerância à lactose que há no leite. Por isso, leite não”. Já os sumos de frutas também dispenso enquanto não resolverem a questão dos resíduos de pesticidas e o problema levantado no estudo que apontava para … não sei muito bem para quê, mas não era nada de interesse e, também, acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.

Carne vermelha, claro, também não. Tem gordura saturada, aumenta o colesterol e ataca o coração, diz o estudo. E é má para o intestino. Galinha nem sonhar porque umas estão cheias de gripe e as outras encharcadas de antibióticos. Além de que, carne de galinha a mais, como dizia outro estudo, impacta com o desenvolvimento dental, o que até parece óbvio pois as galinhas não desenvolvem dentes. Cortei a galinha há muito tempo. Porco? Só a brincar. É óbvio que não há cá porco em casa. Não chegasse o que se diz, ainda veio outro estudo, ou ainda não leu? Pois então, diz que o excesso de carne de porco pode provocar uma diminuição da massa cinzenta e o aumento dos ciclos atópicos do mastóideo singular. Ninguém quer passar por isso! Você quer? Eu não, mas, também, acho que compreende, não quero morrer assim de qualquer maneira. Esqueça-se a carne de porco, pelo amor da santa!

Já me esquecia do glúten! Glúten, também não. É que nem pensar! Durante muitos anos nem sabia que existia, mas desde que soube da existência de semelhante coisa, parei com tudo o que tivesse glúten. Deixa-me pouca escolha, mas também acho que compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira.

Ovos! Claro que também não como ovos. Primeiro porque não sou nenhum ovíparo e depois por causa das quantidades de coisas que aquele estudo que saiu na semana passada dizia. É um rol, senhores, um rol e colesterol! Vão ver e admirem-se! Os ovos! Quem diria os ovos …. Enfim, é a vida: os ovos, nem vê-los! Tal e qual a manteiga: é só gordura! Desde que acabei com o pão e com o queijo, a manteiga também, por assim dizer, deixou de fazer falta. Ainda a usava para fritar ovos, mas agora também não se podem comer ovos…. Pois, a manteiga, dizia o estudo, é só gordura animal e animais não devem comer a gordura uns dos outros. Pareceu-me um bom argumento e por isso e nada mais, acabei com a manteiga.

Ia fazer uma salada. Sem muito azeite, claro, porque, compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira, sem sal, naturalmente, e vinagre só do orgânico, porque, compreendem, não quero morrer assim de qualquer maneira …. É quando recebo um email com o título Novo Estudo Aconselha a Ingestão Moderada de Saladas e Hortaliças. Enchi um copo de água, filtrada, naturalmente, duma garrafa de vidro e sorvi um golo ávido. Espero que não me faça mal”.

Há “ratos” e há alguns Homens …

Chovia muito. As ruas começavam a transformar-se num lamaçal. Havia gente desorientada por todo o lado e um movimento inusitado em direção a Belém. Há tempo que corriam por Lisboa rumores de que a família real estaria a preparar a partida para o Brasil, mas no dia 26 de Novembro de 1807 já não restavam dúvidas a ninguém – a decisão fora, finalmente, tomada no dia anterior numa reunião do Conselho de Estado. Com as primeiras tropas francesas já em Portugal, a família real e grande parte da nobreza corria a Belém e preparava-se para deixar o país. Não eram, a acreditar na descrição feita por Raul Brandão em El-Rei Junot, cenas dignificantes. “Na véspera do embarque [que aconteceu a 27, sendo depois a partida a 29] remexe-se tudo: as roupas, as joias, as inutilidades. Na casa de este, de aquele, do Lavradio, do Angeja, do Cadaval, do Alegrete, há gritos, cólicas, desmaios, uma mixórdia de saque e de grotesco – arcas arrombadas, farrapos, lágrimas, desespero. Aferrolha-se e clama-se: – depressa! Depressa!… – Foge tudo, foge toda a gente de representação e de vergonha: fidalgos, ricos, pregadores, poetas obscenos, a corte, as damas frágeis e inúteis, as figurinhas d’encanto, e as criadas, as pretas, os anões. O drama é idêntico em todas as casas soberbas: enfardela-se, enfardelam-se de mistura objetos indispensáveis, seringas de clisteres, joias, quadros, inutilidades, vergonhas e riquezas. Depressa! Depressa!”. 

O relato de Raul Brandão é, também aqui, bem mais impiedoso, sobretudo para o príncipe regente. “Na quarta-feira à noite juntam-se as riquezas das reais capellas, de Queluz, da Ajuda, da Bemposta e as do palácio real, as preciosidades, os tesouros que tinham celebridade na Europa. É um verdadeiro saque: calcula-se que vão para o Brasil mais de 80 milhões de cruzados.” 

No dia 26, D. João junta-se à família em Queluz, e, mais uma vez, Raul Brandão traça um retrato patético do governante, que na véspera tinha sofrido “um forte ataque de hemorroidal” e que anda pelo palácio, desorientado, “de beiça caída”. O historiador José Acúrcio das Neves (citado por Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa na sua biografia de D. João VI) não o ridiculariza desta forma, mas descreve o seu estado de espírito: “Queria falar e não podia, queria mover-se e, convulso, não acertava a dar um passo: caminhava sobre um abismo e apresentava-se à imaginação um futuro tenebroso e tão incerto como o oceano a que ia entregar-se”. Chegou em seguida a rainha, D. Maria, “a louca”, a quem é atribuída a frase que, na altura, muitos consideraram como a única lúcida: “Não corram tanto, ainda vão pensar que estamos a fugir”.

Às vezes tento imaginar esta “cena pouco edificante”, só comparável ao naufrágio de um navio em que, ao sentir o perigo, “os ratos são os primeiros a abandonar o barco”. E “aqueles ratos”, não se limitaram a abandonar este barco que é Portugal, como ainda “levaram consigo” para lhes “facilitar a vida” até ao final dos seus dias, todo o “queijo” a que puderam deitar a mão e carregar, mesmo na “pressa de se porem na alheta” antes que chegassem os invasores. E o povo? E o país? Que se amanhassem sozinhos, porque o que lhes importava era salvarem a pele. Ou melhor, “o coiro”, além do “oiro”, pois um precisa sempre do outro, como se compreende.

Em contrapartida, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, ator e comediante tornado político, aconselhado por americanos e turcos a abandonar Kiev, a capital do seu país, durante o maior ataque das tropas russas, recusou a oferta e preferiu ficar ali com as suas forças, dizendo: “Fico em Kiev. Não me escondo. A luta é aqui”. Acrescentou ainda: “Preciso de munições, não de uma boleia”. Esta extraordinária atitude de permanecer firme no seu posto de comando ainda é mais rara se atendermos que ele é o alvo número um a abater pelos russos (e já fizeram três tentativas), a guerra é extremamente desigual pois os russos têm uma das maiores máquinas de guerra do mundo, para além de que as armas de hoje têm um poder letal muitíssimas vezes superior às armas do tempo do nosso rei D. João VI.

Apesar de ter o curso de direito, nunca exerceu e cedo se dedicou à vida de comediante, tendo mesmo para o efeito desempenhado um papel de presidente da Ucrânia. A sua ascendência ao poder é fruto dos ucranianos terem rejeitado as elites e os políticos, vistos pela população como incapazes de superar as dificuldades económicas e os escândalos de corrupção. E é este homem sem formação política que acaba por se assumir por inteiro como presidente do seu país, mostrando ao mundo que os Homens lutam pelo que é seu, não se evadem e estão preparados para dar a própria vida se a luta o exigir.

Logo ao assumir as funções de presidente disse aos elementos do governo: “Não quero a minha fotografia nos vossos gabinetes, pois o presidente não é um ícone, um ídolo ou um retrato. Ponham as fotos dos vossos filhos e olhem-nos cada vez que tenham de tomar uma decisão”. E, aquando da invasão russa que Putin julgava um passeio ele disse: “Quando nos atacar verá os nossos rostos e não as nossas costas”, numa clara afirmação da resistência firme do seu povo, com ele à frente a indicar o caminho a seguir na luta. Não se podem pedir sacrifícios à população se não se fizer parte da lista de sacrificados.

Zelensky e os ucranianos com a sua enorme vontade de serem donos do seu próprio destino mostram aos russos que recusar a opressão é possível apesar de isto ser um caso raro de David contra Golias, uma guerra julgada impossível, mas a que não viraram a cara, vindo a ficar na História como um inabalável exemplo de resistência deste século contra o poder esmagador de uma autocracia.

Podemos rever a liderança de Zedensky num parágrafo do romance Portões do Inferno, de Steven Pressfield, sobre uma batalha, quando um pequeno número de espartanos e aliados enfrentou o poderoso exército do Império Persa:  

“Um rei não fica dentro de sua tenda quando seus homens sangram e morrem sobre o campo. O rei não janta quando seus homens passam fome, nem dorme quando ficam de vigília sobre as muralhas. Um rei não torna seus homens leais pelo medo, nem compra sua lealdade com dinheiro: ganha seu amor com o suor das próprias costas e com as dores de que padece por sua causa. É nisto que consiste o fardo mais duro: um rei se levanta primeiro e se deita por último. Um rei não pede o serviço daqueles que lidera; em vez disso, presta-lhes o serviço. Ele serve aos seus homens, não os homens a ele.”

Num tempo em que a Humanidade atravessa uma crise séria de bons governantes, ele tornou-se o herói improvável que se agigantou nesta luta desigual contra um autocrata e criminoso para quem a morte de milhares de pessoas inocentes é um pormenor. Zelensky hoje é um símbolo global que mobilizou o seu povo na luta pelo direito de ser livre e viver em democracia e sensibilizou o mundo livre, como se viu

nas imagens duma mulher quando traduzia uma das suas mensagens a um Parlamento ocidental, de voz embargada com lágrimas a correr pela face, mal conseguiu dizer: “Nós sabemos exatamente aquilo que estamos a defender”. 

São mesmo problemas de … (trampa)

Os jovens de hoje é que têm razão: o local certo para se morar é na casa dos pais. E é por isso que cada vez são mais os que querem ficar por lá, até porque os pais na sua eterna vontade de os ter debaixo da asa manifestam uma satisfação enorme em tê-los consigo, se bem que na maior dos casos não possam contar com a sua ajuda para nada no que à casa diz respeito. Gostam de usufruir, mas cortar a relva não é com eles, dar uma ajuda no quintal “era o que mais faltava” e sempre que se tenta descolá-los do computador, telemóvel ou tablet e “deitar a mão” num arranjo qualquer em casa, não estão para aí virados. Ora, viver numa casa onde só se usufrua dela e não se tenha de dar algum contributo ainda é melhor do que viver num hotel. Se calhar, também nunca deveria ter saído da casa dos meus pais. O meu quarto ainda lá está, ainda tenho a mãe (com muita idade) e uma irmã para tomarem conta da “barraca” e não tinha de ser escravo da minha. 

Entrei logo com o pé errado quando a casa começou a ser construída pois saiu-me um empreiteiro “de carregar pela boca” e tive muito mais problemas do que se tivesse sido eu a construí-la (não sendo eu “da arte”, fiz com um jornaleiro que também não o era, a construção dos anexos e que, até à data, ainda não me deram problemas). Já não posso dizer o mesmo da casa. Mas só dei conta disso quando já era tarde e depressa cheguei à conclusão a que muita gente que se mete nessa aventura chega: só devia começar a construí-la quando estava a ficar pronta. Mais ainda nesse tempo em que o conhecimento sobre a matéria e os sistemas construtivos estavam muito aquém dos dias de hoje. 

Não valendo a pena falar sobre a odisseia que passei durante a fase de construção, depois de alguns meses de uso tive o primeiro caso. Pelo Natal juntei aqui quase toda a família, parte dela vinda de longe, numa consoada que também era para lhes mostrar a nova habitação. No dia 25 de Dezembro, quando já estávamos à mesa, alguém detetou um cheiro estranho que vinha da cave e veio chamar-me a avisar do sucedido. Saí da mesa e fui tentar descobrir a causa desse eventual incidente. Mas não foi preciso procurar muito pois o problema estava a meus pés. Quando desci as escadas e entrei na garagem, senti que o pavimento estava inundado. Foi assim que dei de caras com um lago de trampa a sair de uma caixa de visita que o “construtor inteligente” havia deixado no meio da divisão e que, devido ao baixo diâmetro do tubo de esgoto e à fraca qualidade da construção, entupira no curto espaço de poucos meses. Ainda hoje revejo a interrupção do almoço daquele Natal, a meter o nariz num pivete de dar volta ao estômago e, de galochas, a arrancar a tampa da caixa de visita que quase se não via naquele lago de porcaria, para resolver o que se pode dizer com toda a propriedade, ser um “problema de merda” ….

Mas muitos outros foram aparecendo e o primeiro a ser recrutado para “apagar o incêndio” era sempre eu. E, “não sendo de nenhuma das artes”, lá fui “atamancando” quando o problema tinha solução ao nível do meu conhecimento. No caso do meu nível de incompetência ser superior à capacidade de resolução, deixava, e deixo, para os que sabem “da poda”. 

O esgoto da banca de cozinha entupiu e lá fui chamado para resolver o problema. É o costume. Nem a água quente, nem aquele líquido que é apropriado para desentupir foram solução. Então, entrei de serviço. Desmontei o sifão e limpei-o, mas não foi suficiente. Desmontei até à parede o tubo de esgoto, limpei o lodo acumulado em baixo e enfiei um cabo de aço pelo tubo dentro, mas não entrou mais que um metro sem fazer a água correr. Fui ao lado de fora da casa e abri a caixa de visita mais próxima da cozinha e, com a mangueira, meti água à pressão, saindo algum lixo. Usei ainda uma “verguinha” de ferro para desentupir o tubo, mas só conseguia entrar até chegar à parede da casa. Continuava entupido. A minha função como canalizador chegou ao fim e passei a proprietário duma casa com um problema. Telefonei ao picheleiro, que fez o favor de me arranjar alguém para vir a minha casa nesse sábado. Veio um rapaz amigo, o João que, depois de ver o que eu já tinha feito, experimentou uma coisa diferente. Foi à caixa de visita onde eu tinha ido, introduziu a mangueira no tubo de esgoto com a água de pressão como eu o tinha feito, mas fez algo mais, pois embrulhou a mangueira com um pano enrolado, tapando o tubo e evitando o retorno, fazendo com que a água à pressão forçasse o caminho até á banca. E resultou, provocando uma inundação de lodo e água suja na cozinha. Quem sabe, sabe. No final, o comentário do João foi só este: “O esgoto da banca é o que está mais sujeito a lixos, gorduras e todo o tipo de detritos. Por isso, o diâmetro do tubo devia ser, no mínimo, de 90 ou mesmo de 120 para não entupir como foi o caso. Como o normal é colocarem tubo de 50, quando não de 40, isto acontece todos os dias e ninguém aprende. Se soubessem o número de vezes que eu tenho de desentupir estes tubos, aprendiam com certeza”.   

É verdade, já ouço há muito tempo que das coisas a ter mais cuidado na construção de uma casa deve ser com tudo o que fica enterrado: tubos de água, eletricidade, gás e esgotos. E destes, especialmente a água e, mais ainda, os esgotos, porque cheiram mal. Este caso que me aconteceu há dias foi um exemplo do que não deve ser feito quando da construção de uma casa. Felizmente hoje a capacidade técnica nas especialidades das construções é muito melhor e até o conhecimento para o acompanhamento e fiscalização nada tem a ver com aquele de que me podia valer então. No entanto fica o alerta para quem cai na asneira de deixar o “bem-bom” teimando em deixar a casa dos pais e arriscar construir uma moradia: cuidem-se, para que os problemas que vêm a caminho sejam em menor número. Porque virão sempre …   

Nota – Já esta crónica estava pronta a ser enviada ao jornal quando me chamaram da cozinha: o esgoto da banca voltou a entupir. Tive de entrar de serviço. No entanto aprendi a lição que o João me ensinou e desta vez injetei a água à pressão a partir da caixa de visita, com um velho trapo a ajudar no bloqueio do retorno. Quando senti a pressão no máximo e depois o alívio, ouvi um grito vindo de casa: inundara a cozinha com água suja. O defeito continua e só mesmo a substituição do tubo por um de maior diâmetro como aconselhou o João impedirá que isto volte a repetir-se. E o que tem que ser, tem muita força … 

O medo é um “papão” que nos limita

Diz a ciência que o medo funciona como um mecanismo de defesa que nos protege dos perigos e que é essencial na nossa vida. Porém, quando mal-usado, o medo limita-nos no que fazemos. Somos muito condicionados pelo medo das crenças em que vamos acreditando e quantas vezes deixamos de fazer algo que poderia mudar a nossa vida só pelo medo de arriscar. Se formos ver o que está por detrás desse medo, na maior parte das vezes é algo que nos foi dito em criança e que mais tarde acaba por se tornar num limite. Quantos pais não disseram aos filhos pequenos “se não comes, vou chamar o papão” ou algo usado na minha infância “se te portares mal, vem aí o homem do saco e leva-te”, já para não falar dos que a dada altura da vida ouviram: “nunca vais ser ninguém”. Com estas e outras palavras muitas vezes fica no subconsciente um medo que irá condicionar a vida do futuro adulto. E quando temos medos devido à educação que recebemos, maiores serão as dificuldades em tomar consciência do quanto esses medos moram na nossa mente. Ora, o problema é que a maioria de nós nega e não assume os medos que tem, não sendo essa a melhor forma de os ultrapassar.

São muitos os medos que nos assolam, uns que ganhamos em criança e outros ao longo da vida. Daí haver o medo de conduzir, das alturas, de envelhecer, do escuro, de alguns animais, de perder familiares, de descer escadas, de dormir e morrer, de agulhas, de falhar e até dos palhaços. Mas quase sempre temos medo do que desconhecemos. É caso para perguntar quem nunca sentiu fisicamente o medo, seja com a respiração acelerada, enjoos, palpitações do coração, suores frios, tremores e outras alterações físicas?

O grande segredo dos treinadores com maior sucesso em diversas modalidades está em conseguir que os seus atletas se superem ao fazer com que percam o medo de falhar e partam para o jogo com autoconfiança e mentalidade vencedora. Porque aqueles que têm medo de errar, de rematar, de não marcar, estão condenados a não ter sucesso.  

Hoje, mais que nunca, vivemos numa sociedade que fomenta o medo e que nos condiciona a todos, consciente ou inconscientemente, de uma ou outra maneira. Então os últimos dois anos têm sido um maná para todos aqueles que lucram com o negócio do medo. Primeiro, foi a pandemia e agora é a guerra na Ucrânia. Olhando para trás, quais foram as consequências desses noticiários longos onde quase só se falava de Covid-19 com todos os dados sobre infetados, internados em hospital e mortos, qual a evolução de ontem, hoje, a previsão dos dias seguintes da pandemia e as medidas, contramedidas, planos de combate que no dia seguinte já não o eram? Enfim, um verdadeiro massacre que trouxe o medo a grande parte da população, quando não pânico. E com isso comprou-se máscaras, gel desinfetante, álcool, luvas, lixivia e quantos produtos mais para lavar, ensaboar, limpar, desinfetar e proteger. Armazenou-se de tudo, do papel higiénico aos alimentos, sendo que em muitos produtos nem se discutia o preço pois o que era importante “era que houvesse”. O medo do Covid-19 até levou a que um elevado número de casais trocasse a cidade pela aldeia e o apartamento pela moradia.

E a consequência foi consumir-se muita medicação, especialmente ansiolíticos. Já há muito tempo que o medo não era tão bom negócio nem rendia tanto dinheiro. E não foram assim tão poucos os que se aproveitaram da situação.

Ainda nem sequer saímos da pandemia e já chegava um novo medo a ser “vendido” em doses maciças pela imprensa e não só: A guerra na Ucrânia. Depressa passamos a ser bombardeados com os telejornais quase só dedicados ao tema, programas ditos de informação sobre a guerra, além dos diretos a partir da Ucrânia, com doses a triplicar de medo ensacado para ficarmos a remoer durante a noite. Como se não fosse suficiente, impingem-nos alguns comentadores especializados, estrategas de guerra e as antevisões de como esta pode evoluir, quais as baixas dos dois lados (se é que alguém sabe) e das possibilidades de um dia bater à nossa porta. E além disso, as consequências para o nosso bolso com o aumento dos combustíveis (sem que nenhum dos inteligentes explique como foi possível aumentar o preço do produto que foi comprado há três meses atrás ao mesmo preço do que nos era vendido antes de começar a guerra), das matérias-primas que estão a ir pelo mesmo caminho e a consequente subida de tudo que usamos no dia a dia. 

E ao ver a nossa vida andar para trás somos assaltados pelo medo dum amanhã desconhecido (e temos medo de tudo o que não conhecemos). O medo diz-nos para açambarcar produtos porque amanhã serão mais caros e, pior, pode não haver. Há até quem tenha pensado em construir um abrigo subterrâneo para a eventualidade de guerra nuclear, comprando desde já comprimidos de iodo (pouco deve haver já nas farmácias). Alguém ganha muito com o aumento dos preços, a começar pelo estado, que se aproveita para sacar mais dinheiro aos contribuintes. E a estes, que não têm a quem ir buscar o que lhe tiram, só lhes resta gastar um pouco (ou muito) mais nessa medicação específica para quem sofre de medo, stress, depressão e esgotamento e para acalmar as crises de ansiedade.

Nesta era tão imediatista em que vivemos, o medo tem potenciado grande parte das crises emocionais que a nossa sociedade sofre. A informação demasiada sobre algo que nos ameaça, o desconhecido que temos de enfrentar ou não, dá cabo da nossa saúde mental pois injeta-nos o medo diariamente e a toda a hora que, como dizem os brasileiros, “é dose p’ra caramba” … 

Neste tempo de exceção, o bom senso e a nossa sanidade mental recomendam que se desligue a televisão sempre que nos vêm vender mais informações sobre a guerra, pois todos já percebemos que é injusta, imoral e criminosa. Pelo contrário, devemos ter o coração, os braços e a mente abertos para receber e ajudar os ucranianos até ao limite das nossas possibilidades porque são vítimas inocentes duma mente cruel, sem nos deixarmos arrastar para o medo daquilo que não conhecemos e que só nos limitará e fará sofrer. E por tudo aquilo que tenho visto, sinto grande alegria pela vaga de solidariedade que tem percorrido o país de norte a sul. Dessa, sim, não teremos que ter medo, mas sentir um orgulho enorme …   

Perder a mulher sem saber como …

A maioria das pessoas tem consciência que os homens são diferentes das mulheres e que, quando se quer que ambos se comportem no dia a dia da mesma forma, é um absurdo que pode acabar mal. Conheci o João e a Catarina quando começaram a namorar e cedo assumiram o compromisso de colocarem toda a sua dedicação e empenho para eliminar as diferenças que existiam entre eles e que os incomodava. Enquanto o João era desorganizado, introvertido, estudioso e sério, a Catarina pode-se dizer que era precisamente o inverso. Daí a vontade de mudarem para contentar o outro. Na realidade o que conseguiram foi perceber que cada um tinha a sua individualidade e, com o tempo, ela começou a reclamar cada vez menos dos “defeitos” dele e aceitar a sua “desarrumação organizada”, o não ouvir nada do que ela dizia quando via futebol ou um filme na televisão e não dar conta de tantas coisas que se passavam à sua volta. Da parte dele também se ajustou fazendo “ouvidos de mercador” às resmunguices crónicas dela e, com essa aceitação, casaram anos mais tarde e têm uma excelente relação, se bem que ela nunca deixou de se irritar quando ele deixa as tralhas espalhadas pela casa.

Fingir que homens e mulheres são iguais é não querer ver a realidade e, além de ser injusto, é um mau serviço aos dois. Eu tenho noção que muitas vezes quando estou com a atenção numa coisa não ouço mais nada, mas também não fico tão fora da realidade como o António: 

O médico da Joana prescreveu-lhe uma cintigrafia na última consulta, um exame clínico para conseguir descobrir o problema que a aflige. Para o realizar através do SNS só viria a encontrar na Vila da Feira uma Clínica com acordo. Não sabendo onde ficava a Clínica, pediu à nora que pesquizasse na internet qual o caminho para lá chegar e ela assim fez, dando-lhe como referência o Hotel IBIS da cidade que era mesmo em frente. E foi o marido António que a acompanhou e levou na sua carrinha. Já perto da cidade pediram ajuda a um motorista que estava parado na berma da estrada pois não tinham bem a certeza do rumo a seguir, dando como referência o Hotel. Depois, numa rotunda, o António apercebeu-se de uma placa a indicar o IBIS, parando só um pouco mais adiante. Disse à mulher: “Vi ali atrás uma placa do Hotel e vou ver o que diz”. Saíram os dois da carrinha e, enquanto o António voltou à rotunda ver da placa, a Joana dirigiu-se ao casal que estava a entrar no carro uns metros adiante para pedir a informação. Quando ela os interrogava, estranhou a cara de espanto que os dois fizeram ao olhar na direção da carrinha e só se apercebeu da razão ao voltar- se para regressar à viatura: a carrinha tinha desaparecido. Da viatura e marido, nem sinal. Não se preocupou, pois lembrou-se que o nível de combustível estava a chegar à reserva e ele devia ter ido abastecer ao posto de combustível localizado um pouco mais abaixo. Caminhou nessa direção e quando pôde ver completamente o posto percebeu que a carrinha também não estava lá. “Onde é que aquele homem se meteu”, pensou ela?

Ora quando o senhor António foi junto da placa e viu para onde tinha de seguir, regressou à carrinha, sentou-se ao volante e arrancou de olhos na estrada, indo diretamente ao IBIS que ficava relativamente perto. Chegou, parou e disse: “Já cá estamos junto do Hotel e a Clínica deve ser aquela”. Foi quando se voltou para a mulher, supostamente sentada no assento a seu lado. Qual não foi o seu espanto ao ver que a Joana desaparecera como que por magia, ali mesmo do seu lado! Não querendo acreditar, olhou para a parte de trás da carrinha com a leve esperança dela estar lá metida. Mas também não estava lá. Sem saber o que fazer, acabou por descobrir que tinha de voltar à rotunda, mas estava desorientado e já nem sabia como lá chegar. E foi só depois de algumas transgressões, de atravessar o traço contínuo e quase chocar com outra viatura, que conseguiu chegar à rotunda e reaver a mulher perdida sem saber como – e que teve mais bom senso do que ele ao esperar no local onde a abandonara, sem ele conseguir explicar como tudo acontecera. À distância, concluí que o António, focado na direção a seguir, deixou de ver tudo o resto que estava à sua volta, inclusive a mulher. É o tal problema dos homens: só conseguem fazer uma tarefa de cada vez. E de tão focado na sua tarefa, ela saiu-lhe do radar …

É certo que os homens também são mais distraídos e esquecidos do que elas. Nós não nos damos conta de muitas coisas que se passam à nossa volta e que são motivo para elas se irritarem, porque nada lhes escapa e até acham que nós temos a obrigação de ver tudo aquilo que elas veem. É normal nessas ocasiões “ouvirmos” o que não gostamos e ficamos com cara de parvos a perguntar: “O que é que se passou aqui”? 

Recordo com saudade um conceituado advogado local que um dia foi ao Porto com a esposa e só quando regressou, entrou em casa e perguntou a um dos filhos onde estava a mãe, é que “soube” que se esquecera dela. E ainda quando um dia viajava de carro com ela e os filhos, como uma das portas de trás ia mal fechada um deles abriu-a e bateu-a com alguma força para ficar bem fechada. E ele, agarrado ao volante, perguntou: “Quem foi que entrou”?  

Também quem ia muito atento a conduzir a sua velha motorizada era o João “Tralha”. Saiu de casa com a mulher atrás a caminho de Ribas. Ao aproximar-se de uma curva mais apertada pôs a cabeça de lado e gritou para a mulher poder ouvir: “Agarra-te a mim para não caíres nesta curva”. Mas a curva aproximava-se e ele não sentiu o abraço da mulher. Já ia “barafustar” com ela quando se lembrou de olhar para trás e viu que a mulher desaparecera. “Onde é que se meteu a minha mulher?”, interrogou-se ele. E deu meia-volta, indo encontrá-la a uma boa distância. Tinha caído abaixo da motorizada sem que ele desse por isso quando teve de parar no entroncamento e depois arrancou de repente. Se não fosse aquela curva apertada, chegaria ao destino sem saber como é que a sua mulher se “evaporara” …

Nós homens somos assim e querer que seja diferente é pura ilusão, é esperar o impossível. Quero acreditar que os casos citados não são assim tão comuns, pois não deve haver muita gente por aí a perder a mulher sem saber como nem onde. Imagino que são muitos mais os que as perdem a saber quando, como, onde e porquê …

Sejamos solidários com a Ucrânia …

Nas minhas orações da noite passou a constar o agradecimento por todas as pequenas (ou talvez grandes) coisas de que usufruímos no dia a dia e que não costumamos valorizar porque as consideramos uma espécie de “direitos adquiridos”: o ter um teto para me abrigar, abrir uma torneira e ter água canalizada sem me preocupar de onde vem, tocar no interruptor e jorrar luz como se fosse dia, ter comida no frigorífico e na despensa, poder sair à rua em segurança e sem receio de ser atacado, encontrar a vida da comunidade onde vivo bem organizada e poder comprar tudo o que preciso (ou não), sejam produtos ou todo o tipo de serviços. Mas, sobretudo, viver em paz e segurança. E passei a incluir esse agradecimento a Deus ao pensar no povo da Ucrânia e aquilo por que estarão a sofrer, pois julgo que há algumas semanas atrás também eles estariam convictos que esses seus “direitos adquiridos” lhes pertenciam e eram intocáveis. Só em momentos como os que eles estão a viver devemos perceber como tudo é tão transitório e vulnerável e em como de uma hora para a outra o certo passa a incerto ou inexistente, incluindo o direito à vida. 

Tenho tentado imaginar como será se num instante assim a minha segurança, da família e do meu mundo, que eu dou por adquirida, se perder por completo no meio de uma guerra saída do nada e passar a viver entre tiroteios, explosões, carros de assalto, comboios militares, bombardeiros, misseis e dezenas ou centenas de milhares de homens armados e preparados para matar a troco de nada. Que fazer no meio de um pandemónio desses, sujeito a ver a minha casa desfazer-se na explosão de um míssil e não ter sequer água, eletricidade, alimentos, combustível nem condições básicas de vida, quando o importante é salvar a pele escondido numa cave, fugir para onde a loucura ainda não ande à solta? Ao olhar as imagens e ouvir os relatos do que se passa na Ucrânia fico incrédulo. Nunca acreditei ver a possibilidade de uma guerra destas rebentar na Europa, por agora a milhares de quilómetros de distância, mas que facilmente se pode tornar perto. E tudo pela mente perversa de um ditador, violando todos os acordos de paz e tratados de amizade, papeis que só lhe devem servir para limpar o traseiro.

Neste momento, o meu pensamento vai para o povo ucraniano que não é mais do que a vítima escolhida pelos russos para alcançar os objetivos que se sabe onde começaram, mas não se sabe ainda onde vão acabar …

No século passado a Europa deixou morrer mais de 90 milhões de pessoas em guerras, com o desgaste natural da economia. Parece que Putin tem vontade de retomar o caminho da morte quando o destino devia ser precisamente o contrário. E hoje, com os instrumentos de guerra mais sofisticados, além da destruição e morte, o principal produto das guerras passou a ser um grande número de refugiados, como já estamos a ver neste conflito. 

Dum homem que só sei que fala castelhano: “Nenhuma guerra tem a honestidade de confessar “eu mato para roubar”. As guerras invocam sempre motivos nobres, matam em nome da paz, em nome de Deus, em nome da civilização, em nome do progresso e até da democracia. E se, por via das dúvidas, se nenhuma dessas mentiras for suficiente, aí estão os grandes meios de comunicação dispostos a inventar novos inimigos imaginários para justificar a conversão do mundo no grande manicómio e num imenso matadouro.

Na peça Rei Lear, Shakespeare escreveu que, neste mundo, os loucos guiam os cegos e, quatro séculos mais tarde, os senhores do mundo são loucos apaixonados pela morte, que tem transformado o mundo num lugar onde a cada minuto morrem de fome ou doença curável dez crianças e a cada minuto se gastam três milhões de dólares na indústria militar que é uma fábrica de morte. Ora, as armas exigem guerras e as guerras exigem armas e os cinco países que gerenciam as Nações Unidas e têm o poder de veto nas Nações Unidas, acabam por ser também os cinco principais fabricantes mundiais de armas. Alguém se pergunta: “Até quando”? Até quando a paz mundial estará nas mãos daqueles que fazem o negócio da guerra? Até quando nós vamos continuar a acreditar que nascemos para o extermínio mútuo e que o extermínio mútuo é o nosso destino? Até quando?”

Efetivamente, já não é compreensível que no século XXI o fabrico de armas de guerra continue a ser um negócio multimilionário e que se esteja a investir permanentemente em novas armas, cada vez mais letais, cada vez mais sofisticadas. Para quê? Para alimentar guerras e matar pessoas que tantas vezes nada têm a ver com a guerra ou para onde foram atiradas como carne para canhão, enquanto tudo corre bem para o negócio. Tal como o agente funerário diz, “não quero que ninguém morra, mas quero que a minha vida corra”.

Hoje, milhões de ucranianos foram transformados em refugiados em poucos dias tendo de fugir e abandonar a vida que julgavam segura e pacífica, deixando para trás todos os frutos do seu trabalho, só para salvar a sua vida e dos seus, porque um louco acordou a sonhar que havia de reconquistar todos os pedaços do império russo e da União Soviética, invadindo a Ucrânia e ameaçando o mundo ocidental com o seu poderio nuclear. Por isso, não podemos pensar que isto nada tem a ver connosco. Pode ter a ver muito, mas só o sentiremos quando for tarde. E aí vamos interrogar-nos, como o fizeram os ucranianos que não acreditavam que a Rússia fosse capaz de invadir o seu belo país: “E agora”?

O dramaturgo Bertolt Brecht escreveu: “Primeiro levaram os negros. Mas eu não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida eles levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso porque eu não sou miserável. Depois levaram os desempregados, mas como tenho o meu emprego, também não me importei. E agora, estão a levar-me. Mas já é muito tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”.