Há “ratos” e há alguns Homens …

Chovia muito. As ruas começavam a transformar-se num lamaçal. Havia gente desorientada por todo o lado e um movimento inusitado em direção a Belém. Há tempo que corriam por Lisboa rumores de que a família real estaria a preparar a partida para o Brasil, mas no dia 26 de Novembro de 1807 já não restavam dúvidas a ninguém – a decisão fora, finalmente, tomada no dia anterior numa reunião do Conselho de Estado. Com as primeiras tropas francesas já em Portugal, a família real e grande parte da nobreza corria a Belém e preparava-se para deixar o país. Não eram, a acreditar na descrição feita por Raul Brandão em El-Rei Junot, cenas dignificantes. “Na véspera do embarque [que aconteceu a 27, sendo depois a partida a 29] remexe-se tudo: as roupas, as joias, as inutilidades. Na casa de este, de aquele, do Lavradio, do Angeja, do Cadaval, do Alegrete, há gritos, cólicas, desmaios, uma mixórdia de saque e de grotesco – arcas arrombadas, farrapos, lágrimas, desespero. Aferrolha-se e clama-se: – depressa! Depressa!… – Foge tudo, foge toda a gente de representação e de vergonha: fidalgos, ricos, pregadores, poetas obscenos, a corte, as damas frágeis e inúteis, as figurinhas d’encanto, e as criadas, as pretas, os anões. O drama é idêntico em todas as casas soberbas: enfardela-se, enfardelam-se de mistura objetos indispensáveis, seringas de clisteres, joias, quadros, inutilidades, vergonhas e riquezas. Depressa! Depressa!”. 

O relato de Raul Brandão é, também aqui, bem mais impiedoso, sobretudo para o príncipe regente. “Na quarta-feira à noite juntam-se as riquezas das reais capellas, de Queluz, da Ajuda, da Bemposta e as do palácio real, as preciosidades, os tesouros que tinham celebridade na Europa. É um verdadeiro saque: calcula-se que vão para o Brasil mais de 80 milhões de cruzados.” 

No dia 26, D. João junta-se à família em Queluz, e, mais uma vez, Raul Brandão traça um retrato patético do governante, que na véspera tinha sofrido “um forte ataque de hemorroidal” e que anda pelo palácio, desorientado, “de beiça caída”. O historiador José Acúrcio das Neves (citado por Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa na sua biografia de D. João VI) não o ridiculariza desta forma, mas descreve o seu estado de espírito: “Queria falar e não podia, queria mover-se e, convulso, não acertava a dar um passo: caminhava sobre um abismo e apresentava-se à imaginação um futuro tenebroso e tão incerto como o oceano a que ia entregar-se”. Chegou em seguida a rainha, D. Maria, “a louca”, a quem é atribuída a frase que, na altura, muitos consideraram como a única lúcida: “Não corram tanto, ainda vão pensar que estamos a fugir”.

Às vezes tento imaginar esta “cena pouco edificante”, só comparável ao naufrágio de um navio em que, ao sentir o perigo, “os ratos são os primeiros a abandonar o barco”. E “aqueles ratos”, não se limitaram a abandonar este barco que é Portugal, como ainda “levaram consigo” para lhes “facilitar a vida” até ao final dos seus dias, todo o “queijo” a que puderam deitar a mão e carregar, mesmo na “pressa de se porem na alheta” antes que chegassem os invasores. E o povo? E o país? Que se amanhassem sozinhos, porque o que lhes importava era salvarem a pele. Ou melhor, “o coiro”, além do “oiro”, pois um precisa sempre do outro, como se compreende.

Em contrapartida, o presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, ator e comediante tornado político, aconselhado por americanos e turcos a abandonar Kiev, a capital do seu país, durante o maior ataque das tropas russas, recusou a oferta e preferiu ficar ali com as suas forças, dizendo: “Fico em Kiev. Não me escondo. A luta é aqui”. Acrescentou ainda: “Preciso de munições, não de uma boleia”. Esta extraordinária atitude de permanecer firme no seu posto de comando ainda é mais rara se atendermos que ele é o alvo número um a abater pelos russos (e já fizeram três tentativas), a guerra é extremamente desigual pois os russos têm uma das maiores máquinas de guerra do mundo, para além de que as armas de hoje têm um poder letal muitíssimas vezes superior às armas do tempo do nosso rei D. João VI.

Apesar de ter o curso de direito, nunca exerceu e cedo se dedicou à vida de comediante, tendo mesmo para o efeito desempenhado um papel de presidente da Ucrânia. A sua ascendência ao poder é fruto dos ucranianos terem rejeitado as elites e os políticos, vistos pela população como incapazes de superar as dificuldades económicas e os escândalos de corrupção. E é este homem sem formação política que acaba por se assumir por inteiro como presidente do seu país, mostrando ao mundo que os Homens lutam pelo que é seu, não se evadem e estão preparados para dar a própria vida se a luta o exigir.

Logo ao assumir as funções de presidente disse aos elementos do governo: “Não quero a minha fotografia nos vossos gabinetes, pois o presidente não é um ícone, um ídolo ou um retrato. Ponham as fotos dos vossos filhos e olhem-nos cada vez que tenham de tomar uma decisão”. E, aquando da invasão russa que Putin julgava um passeio ele disse: “Quando nos atacar verá os nossos rostos e não as nossas costas”, numa clara afirmação da resistência firme do seu povo, com ele à frente a indicar o caminho a seguir na luta. Não se podem pedir sacrifícios à população se não se fizer parte da lista de sacrificados.

Zelensky e os ucranianos com a sua enorme vontade de serem donos do seu próprio destino mostram aos russos que recusar a opressão é possível apesar de isto ser um caso raro de David contra Golias, uma guerra julgada impossível, mas a que não viraram a cara, vindo a ficar na História como um inabalável exemplo de resistência deste século contra o poder esmagador de uma autocracia.

Podemos rever a liderança de Zedensky num parágrafo do romance Portões do Inferno, de Steven Pressfield, sobre uma batalha, quando um pequeno número de espartanos e aliados enfrentou o poderoso exército do Império Persa:  

“Um rei não fica dentro de sua tenda quando seus homens sangram e morrem sobre o campo. O rei não janta quando seus homens passam fome, nem dorme quando ficam de vigília sobre as muralhas. Um rei não torna seus homens leais pelo medo, nem compra sua lealdade com dinheiro: ganha seu amor com o suor das próprias costas e com as dores de que padece por sua causa. É nisto que consiste o fardo mais duro: um rei se levanta primeiro e se deita por último. Um rei não pede o serviço daqueles que lidera; em vez disso, presta-lhes o serviço. Ele serve aos seus homens, não os homens a ele.”

Num tempo em que a Humanidade atravessa uma crise séria de bons governantes, ele tornou-se o herói improvável que se agigantou nesta luta desigual contra um autocrata e criminoso para quem a morte de milhares de pessoas inocentes é um pormenor. Zelensky hoje é um símbolo global que mobilizou o seu povo na luta pelo direito de ser livre e viver em democracia e sensibilizou o mundo livre, como se viu

nas imagens duma mulher quando traduzia uma das suas mensagens a um Parlamento ocidental, de voz embargada com lágrimas a correr pela face, mal conseguiu dizer: “Nós sabemos exatamente aquilo que estamos a defender”. 

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