Sejamos solidários com a Ucrânia …

Nas minhas orações da noite passou a constar o agradecimento por todas as pequenas (ou talvez grandes) coisas de que usufruímos no dia a dia e que não costumamos valorizar porque as consideramos uma espécie de “direitos adquiridos”: o ter um teto para me abrigar, abrir uma torneira e ter água canalizada sem me preocupar de onde vem, tocar no interruptor e jorrar luz como se fosse dia, ter comida no frigorífico e na despensa, poder sair à rua em segurança e sem receio de ser atacado, encontrar a vida da comunidade onde vivo bem organizada e poder comprar tudo o que preciso (ou não), sejam produtos ou todo o tipo de serviços. Mas, sobretudo, viver em paz e segurança. E passei a incluir esse agradecimento a Deus ao pensar no povo da Ucrânia e aquilo por que estarão a sofrer, pois julgo que há algumas semanas atrás também eles estariam convictos que esses seus “direitos adquiridos” lhes pertenciam e eram intocáveis. Só em momentos como os que eles estão a viver devemos perceber como tudo é tão transitório e vulnerável e em como de uma hora para a outra o certo passa a incerto ou inexistente, incluindo o direito à vida. 

Tenho tentado imaginar como será se num instante assim a minha segurança, da família e do meu mundo, que eu dou por adquirida, se perder por completo no meio de uma guerra saída do nada e passar a viver entre tiroteios, explosões, carros de assalto, comboios militares, bombardeiros, misseis e dezenas ou centenas de milhares de homens armados e preparados para matar a troco de nada. Que fazer no meio de um pandemónio desses, sujeito a ver a minha casa desfazer-se na explosão de um míssil e não ter sequer água, eletricidade, alimentos, combustível nem condições básicas de vida, quando o importante é salvar a pele escondido numa cave, fugir para onde a loucura ainda não ande à solta? Ao olhar as imagens e ouvir os relatos do que se passa na Ucrânia fico incrédulo. Nunca acreditei ver a possibilidade de uma guerra destas rebentar na Europa, por agora a milhares de quilómetros de distância, mas que facilmente se pode tornar perto. E tudo pela mente perversa de um ditador, violando todos os acordos de paz e tratados de amizade, papeis que só lhe devem servir para limpar o traseiro.

Neste momento, o meu pensamento vai para o povo ucraniano que não é mais do que a vítima escolhida pelos russos para alcançar os objetivos que se sabe onde começaram, mas não se sabe ainda onde vão acabar …

No século passado a Europa deixou morrer mais de 90 milhões de pessoas em guerras, com o desgaste natural da economia. Parece que Putin tem vontade de retomar o caminho da morte quando o destino devia ser precisamente o contrário. E hoje, com os instrumentos de guerra mais sofisticados, além da destruição e morte, o principal produto das guerras passou a ser um grande número de refugiados, como já estamos a ver neste conflito. 

Dum homem que só sei que fala castelhano: “Nenhuma guerra tem a honestidade de confessar “eu mato para roubar”. As guerras invocam sempre motivos nobres, matam em nome da paz, em nome de Deus, em nome da civilização, em nome do progresso e até da democracia. E se, por via das dúvidas, se nenhuma dessas mentiras for suficiente, aí estão os grandes meios de comunicação dispostos a inventar novos inimigos imaginários para justificar a conversão do mundo no grande manicómio e num imenso matadouro.

Na peça Rei Lear, Shakespeare escreveu que, neste mundo, os loucos guiam os cegos e, quatro séculos mais tarde, os senhores do mundo são loucos apaixonados pela morte, que tem transformado o mundo num lugar onde a cada minuto morrem de fome ou doença curável dez crianças e a cada minuto se gastam três milhões de dólares na indústria militar que é uma fábrica de morte. Ora, as armas exigem guerras e as guerras exigem armas e os cinco países que gerenciam as Nações Unidas e têm o poder de veto nas Nações Unidas, acabam por ser também os cinco principais fabricantes mundiais de armas. Alguém se pergunta: “Até quando”? Até quando a paz mundial estará nas mãos daqueles que fazem o negócio da guerra? Até quando nós vamos continuar a acreditar que nascemos para o extermínio mútuo e que o extermínio mútuo é o nosso destino? Até quando?”

Efetivamente, já não é compreensível que no século XXI o fabrico de armas de guerra continue a ser um negócio multimilionário e que se esteja a investir permanentemente em novas armas, cada vez mais letais, cada vez mais sofisticadas. Para quê? Para alimentar guerras e matar pessoas que tantas vezes nada têm a ver com a guerra ou para onde foram atiradas como carne para canhão, enquanto tudo corre bem para o negócio. Tal como o agente funerário diz, “não quero que ninguém morra, mas quero que a minha vida corra”.

Hoje, milhões de ucranianos foram transformados em refugiados em poucos dias tendo de fugir e abandonar a vida que julgavam segura e pacífica, deixando para trás todos os frutos do seu trabalho, só para salvar a sua vida e dos seus, porque um louco acordou a sonhar que havia de reconquistar todos os pedaços do império russo e da União Soviética, invadindo a Ucrânia e ameaçando o mundo ocidental com o seu poderio nuclear. Por isso, não podemos pensar que isto nada tem a ver connosco. Pode ter a ver muito, mas só o sentiremos quando for tarde. E aí vamos interrogar-nos, como o fizeram os ucranianos que não acreditavam que a Rússia fosse capaz de invadir o seu belo país: “E agora”?

O dramaturgo Bertolt Brecht escreveu: “Primeiro levaram os negros. Mas eu não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida eles levaram alguns operários. Mas não me importei com isso. Eu não era operário. Depois prenderam os miseráveis. Mas não me importei com isso porque eu não sou miserável. Depois levaram os desempregados, mas como tenho o meu emprego, também não me importei. E agora, estão a levar-me. Mas já é muito tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo”.

Leave a Reply