É vulgar na gíria comum, mais entre homens que mulheres, utilizar-se uma linguagem “mecânica” para referir algumas partes do nosso corpo, com sentido crítico, estético, sensual, pejorativo ou elogioso. E isso já vem de longe.: “No tempo em que as adolescentes ainda eram inocentes, uma jovem virou-se para o pai, pedindo ajuda: – Pai, não percebo o que o meu namorado me quis dizer quando referiu que eu tinha um belo “chassi”, dois excelentes “airbags” e um “para-choques” fenomenal. O pai, vivido e conhecedor dos homens e suas intenções, respondeu-lhe de imediato: – Vais dizer ao teu namorado que, se ele tentar abrir o “capot” para meter a” vareta” a medir o óleo, dou-lhe uma tareia tal que lhe “gripa o motor” para sempre. Como é natural, a jovem não percebeu patavina, mas o namorado terá sabido traduzir a “linguagem mecânica” e ler nas entrelinhas do “roncar” do pai dela…
Nessa linguagem, como que uma espécie de “calão automobilístico”, comparam-se peças dos automóveis a órgãos do corpo humano com base na função estética ou funcional. Nuns e noutros ouvimos falar em “carroçaria”, na “coluna ou longarina”, em “motor”, “computador”, “amortecedores”, “faróis”, etc. Muitas vezes se pergunta “como anda essa máquina”, para saber da saúde de uma pessoa. É que, até nesta questão, as palavras são usadas com duplo sentido. À “nascença”, enquanto são “novos”, ambos “funcionam bem, a não ser que exista um “defeito de fabrico”. Mas depois, o desgaste natural provocado pela dureza dos dias e dos “quilómetros andados”, são obrigados a recorrer à “oficina”, que o mesmo é dizer ao “hospital. Hoje, ambos têm tanto no “livro de manutenção” como no “ficheiro clínico” todos os registos das “intervenções” efetuadas num e noutro, como datas ou quilometragem em que devem voltar à revisão, especialmente quando sofrem de “avaria crónica” que os obriga a fazer “vistorias periódicas”.
Nos primeiros anos de vida é só meter “combustível” para alimentar a “máquina” e, com alguma regularidade, passar pela “manutenção” para verificar a “afinação” do “motor” e se precisa de algum “ajuste”. Diria mesmo que nesse período, a frequência da visita “à oficina” é maior nos homens, porque são mais frágeis e necessitam de maior acompanhamento. Não acontece tanto nos automóveis porque já “nascem adultos” e agora livres da limitação de outrora, que era o “período de rodagem”. A evolução técnica suprimiu essa necessidade que impunha um “andamento” mais moderado, sem excessos, bem como manutenções mais assíduas nos primeiros “tempos de vida”.
A adolescência e a “passagem a adulto” são os melhores períodos, pois só precisam de efetuar “revisões” com regularidade, assegurar que têm “combustível” e substituir os “consumíveis” conforme o prescrito. É “sempre a andar”. Nesta fase das suas vidas, os grandes problemas surgem dos “acidentes”, porque podem pôr em causa a “saúde” quer da “carroçaria”, quer de alguns dos “órgãos” essenciais. E, conforme a dimensão dos estragos e as “peças” afetadas, homens e automóveis têm de baixar à “oficina” por períodos mais ou menos demorados, onde estarão sujeitos a “reparações” que podem ir da “carroçaria” ao “motor”, do “sistema de alimentação” às “rodas”. Se antigamente só era possível proceder à substituição de “órgãos” nos automóveis, com os avanços da “engenharia médica” já acontece o mesmo com muitas “peças” nos humanos, ainda longe dos primeiros onde todas as “peças” são passíveis de serem trocadas.
Os problemas da “manutenção humana” começam verdadeiramente na “meia idade”, quando têm de esticar o braço para conseguir ler o jornal ou o livro. Dizem que não é sinal que estejam com problemas de “faróis”, mas do braço ser curto, porque não dá para esticar mais. A mulher insiste com o marido para ir ao “mecânico dos faróis”, que coincide mais ou menos com a ida ao “mecânico do tubo de escape” para fazer um “exame pela porta dos fundos”, a que todos os homens se têm de submeter, embora (quase) sempre contrariados (mas não me vou alongar nos pormenores pois pode ser constrangedor). É aí que os homens sabem ter problemas nos “faróis” e estão a caminho de perder a visão, coisa que não acontece com o “escape”, o tal outro “olho”, que continua “cego” mesmo que a saúde seja boa. Os carros nesta fase começam a dar os primeiros “sinais de perda” e têm de ir ao “hospital” reparar ou substituir alguns “órgãos”, além de fazerem as “manutenções de rotina”, tal e qual os “doentes crónicos”.
Mas os grandes problemas de saúde surgem depois, quando passam a ser chamados de “velhos”. Talvez para não sofrerem do estigma pelo termo “velho”, colocam-lhes novos rótulos que podem ir do “idoso”, “sénior” ou “sessenta mais”, enquanto nos automóveis passam a ser chamados de “antigos” ou até de “clássicos”. Com o “peso da idade” e o “desgaste” natural pelos “quilómetros rodados”, ambos ficam mais debilitados e a “saúde” vai-se agravando. As “idas à oficina”, para além de serem mais frequentes e exigentes, implicam “intervenções” complicadas e caras, que muitas vezes os deixam no “estaleiro” por vários dias.
Ambos podem “ficar carecas”, uns pela “falta de cobertura” e outros pelo desgaste dos “sapatos”; todos trocam “válvulas”, “rótulas” e “canalizações” diversas; enquanto num se “substitui o coração”, o “motor dos homens”, no outro “troca-se o motor”, o “coração dos automóveis”; elementos comum são as “admissões de ar”, vitais para as suas vidas, e o “tubo de escape”, por onde saem “gases poluentes” e de sonoridade de gosto duvidoso feitos “rateres”; ambos podem ser “descapotáveis”, “consomem” mais ou menos conforme a “cilindrada” e gastam “combustíveis” diferentes; os “lubrificantes”, “combustíveis” e “pinturas” são comuns aos dois.
Quando a “ferrugem” ataca os “órgãos principais” e o “coração” deixa de trabalhar, são tidos como “sucata” e entregues aos “Centros de Abate” e às “Capelas Mortuárias”. E vão parar aos “cemitérios” onde são enterrados debaixo de cinco palmos de terra ou prensados em fardos para reciclagem, embora antes se aproveitem as “peças” que estejam em “bom estado” para “salvar” e “dar nova vida” a alguma “máquina” avariada.
Confesso que já não sou a versão original completa. Agora “funciono” com duas “peças” a menos, retiradas por “operações” em “oficinas” especializadas, mas não substituídas, o que até parece mistério. Já troquei as “lentes” dos dois “faróis” com sucesso, pois consigo ver ao longe e ao perto sem dificuldade. O “motor” tem pequenas “falhas”, mas dizem-me que ainda “não está gripado”. E já sou “descapotável” há um bom par de anos. Como já tenho muito “uso”, tento que não me mandem para a sucata e me valorizem como “clássico”, o que talvez me permite fazer mais uns “quilómetros” se os “órgãos” principais não “derem de si” na “primeira curva” ou na “subida mais íngreme” da “estrada da vida”. E então, sim, já não haverá “reparação” que me valha. Será aí que o povo vai dizer: “o motor dele pifou”!!!