Na “passagem” por este mundo, há gente com quem passamos muito ou pouco tempo, mas nos deixa uma marca, lições de vida, boas recordações. E, apesar da distância ou do tempo que nos separa, de vez em quando recordamos, trazemos aos dias de hoje o que ouvimos, aprendemos e sentimos. Foi assim que hoje pus no alto da pilha das recordações o senhor Enes. Homem simples, com a tranquilidade e a sabedoria da idade e da muita instrução, dedicado a uma Instituição da sua terra natal, cruzou-se comigo profissionalmente e por isso convivemos de perto. Nas muitas deslocações que fazíamos em serviço, ainda o vejo recostado no banco de trás da Renault 4L onde teimava ir, sempre com um livro a acompanhá-lo para ler com a viatura em andamento e enquanto nos deslocávamos de um lado para o outro, habilidade que eu não consigo fazer porque o enjoo não deixa. Com mais do dobro tanto da minha idade como de calma e ponderação, em muita situação me convidou a abrandar, “dizendo-me que uma chatice não é um problema” e que não a devia transformar num. E quando eu queria ir ao arrepio dos seus conselhos, deixava sair a sua frase lapidar: “Não corra muito, porque A GENTE VAI EMBORA. Para quê ter tanta pressa?”. A expressão que usava não era mais do que uma chamada de atenção para eu moderar o ímpeto, encarar os factos com tranquilidade, resolver as chatices pelo diálogo ainda que tivesse de ceder porque “um dia destes, A GENTE VAI EMBORA” e vai sobrar-nos arrependimento por não ter sabido aproveitar o tempo que tivemos enquanto andamos por cá. E lembrei-me dele porque me mandaram um poema do jornalista e professor brasileiro Sérgio Cursino titulado precisamente com a frase com que me brindava em momentos de agitação (minha): “A GENTE VAI EMBORA”. Não deixa de ser curioso que este poema não só usa em título as mesmas palavras que ele me dizia já lá vão umas décadas, como muito do seu conteúdo transmite ideias e frases com que o senhor Enes me brindava amiudadamente e que este poeta brasileiro passou a poema muitos anos mais tarde. Porque é uma homenagem a esse velho amigo e um convite à reflexão, acho que vale a pena partilhar o poema do jornalista e poeta brasileiro, um pouco das palavras de um amigo: “A GENTE VAI EMBORA e fica tudo aqui: os planos a longo prazo e as tarefas de casa, as dívidas com o banco e as prestações do carro novo que a gente comprou p´ra ter status. A GENTE VAI EMBORA sem ter tempo de guardar a comida no frigorífico. Tudo vai apodrecer e até a roupa fica no estendal. A GENTE VAI EMBORA, se dissolve, a gente some, toda nossa importância se esvai, essa importância que pensávamos que tínhamos…, a vida continua, segue, as pessoas superam e vão seguindo suas rotinas. A GENTE VAI EMBORA. As grosserias, impaciência, infidelidade, só serviram para nos afastar de quem nos trazia felicidade e amor. A GENTE VAI EMBORA e o mundo continua assim, caótico, muito louco, como se a nossa presença ou ausência não fizesse a menor diferença. Aqui entre nós, não faz. Nós somos pequenos, mas somos arrogantes, prepotentes, feitos bestas. A GENTE VAI EMBORA. E é mesmo assim: num piscar de olhos, de repente, a vida vai. O cachorro que eu amo tanto, é doado. O cachorro se afeiçoa aos novos donos. Os viúvos casam de novo, andam de mãos dadas apaixonados e até vão ao cinema. A GENTE VAI EMBORA e rapidamente somos substituídos nesse cargo que ocupávamos na empresa. E somos substituídos no dia seguinte. As coisas que nós nem sequer emprestávamos são doadas, algumas até atiradas fora. Quando menos a gente espera, A GENTE VAI EMBORA. Aliás, quem é que espera morrer? Se a gente esperasse pela morte, talvez a gente vivesse mais. Talvez a gente colocasse a nossa melhor roupa hoje, talvez a gente comesse a sobremesa até antes do almoço. Talvez a gente esperasse menos dos outros. Talvez a gente risse mais, saísse à tarde para ver o pôr do sol, talvez a gente quisesse mais tempo e menos dinheiro. Hoje o tempo voa, amor. A partir do momento em que a gente nasce, começa essa viagem, essa jornada fantástica veloz com destino ao fim, rumo ao fim – e ainda tem aqueles que vivem com pressa! Eu ainda tenho pressa! O que é que eu estou fazendo agora com o tempo que me resta? Que possamos ser cada dia melhores. Que saibamos reconhecer o que realmente importa nesta nossa breve passagem pela Terra. Só isso. Até porque, A GENTE VAI EMBORA. A GENTE VAI EMBORA”. Já o senhor Enes me aconselhava a preocupar-me só com aquilo que é verdadeiramente importante e para aproveitar o lado bom da vida, as pequenas coisas que nos dão prazer, partilhar todo o tempo possível com aqueles que amamos e … perdoar. Porque não vale a pena viver com rancores, ressentimentos ou ódios. Não ganhamos nada. Pelo contrário, só perdemos. Como ele tinha razão!!! E, fazendo ele já parte da GENTE QUE FOI EMBORA, apesar de não ter escrito o poema (que eu saiba), até parece que deixou o guião ao Sérgio Cursino … Fiquei a pensar que, depois da GENTE IR EMBORA (e vamos quer queiramos ou não, quer pensemos que vamos ficar cá ou não, quer sejamos arrogantes e egoístas ou não …), as pessoas vão continuar suas vidas, o sol nasce e as ruas enchem de gente, o trânsito fica louco e desconhece o luto de quem quer que seja.
As pessoas que choram nossa IDA EMBORA cabem na divisão pequena duma casa grande e o Festival de Música Rock dessa noite vai ser tão curtido como de costume. E a importância da GENTE QUE FOI EMBORA é tal, que um mês depois já quase não há rasto da sua passagem por estas bandas, até na memória da GENTE QUE NÃO FOI EMBORA. E a GENTE QUE FOI EMBORA já não vai ouvir a música Top do próximo verão que também não aproveita, nem conhecer a moda de inverno, o próximo governo e os seus escândalos. Nem saber dos avanços da tecnologia, da Inteligência Artificial, se dinheiro papel vai acabar ou a máquina do tempo vai ser real. E fica sem saber como acabou aquela telenovela que acompanhava todos os dias ou a série semanal que já vai na quinta temporada. Mas também já deixou de se preocupar com as contas da eletricidade, do gás, do telefone, internet, televisão e telemóvel, bem como todas as outras que não queríamos, mas vêm. Mas uma coisa ficou como certeza: “A GENTE VAI EMBORA” …