Rojões com pardais? O que é isso?

Falava-se de pardais e eu meti a colherada: “Os pardais são bons com rojões”. Do outro lado da mesa a mulher mais nova não se conteve e perguntou admirada: “Rojões com pardais? Mas alguém come pardais pequenos que não têm nada que comer”? E eu tive de explicar, tintim por tintim, que há cinquenta anos a maioria das pessoas tinha muito pouco para comer e que tudo o que fosse capaz de servir de alimento, “marchava”. E os pardais eram “carne comestível”, por muito pouca carne que tivessem. “Mas como é que apanhavam os pardais”, pediu ela para lhe explicar. E eu pude contar-lhe como se fazia essa caçada noturna à passarada, pois participei em duas delas quando ainda era rapazote, como “ajudante de campo” de um grupo de homens, tendo como objetivo fazer uma patuscada onde os pássaros inocentes iam acrescentar à panela com alguns rojões. A caçada era à noite porque os pardais, para se protegerem do rigor do inverno, abrigavam-se nas medas de palha de milho. “E o que eram as medas de palha de milho”, perguntou ela mais uma vez. E lá tive de dizer que naquele tempo os lavradores semeavam milho para colher grão, pois era com grão que pagavam a renda ao senhorio. E as plantas, a que chamavam “pés de milho”, depois de colhidas e secas eram amarradas em molhos. Para se conservarem durante o inverno, esses molhos eram “encastelados” por uma árvore ou poste de madeira acima e amarrados a este, por forma a protegerem-se uns aos outros da chuva, como num telhado. Estas “medas” eram feitas quase sempre nas “bordas” dos campos. Era nelas que os pardais se enfiavam à noite no inverno, a sua “cama quente” contra o frio noturno. Tinham cinco a oito metros de altura e quase dois metros de diâmetro. Para apanhar os pardais arranjavam-se duas varas altas que serviam de suporte a cinco metros de “rede”, tipo rede de pesca, por forma a que, quando se encostassem as varas à meda, a rede a envolvesse a toda a altura. Dobrava no fundo para cima e dentro, formando um longo saco. Então, eles aproximavam-se sorrateiramente no adiantado da noite quando os pardais já estavam recolhidos, envolviam a meda com ela usando as varas, acendiam os “gasómetros” e batiam com paus na palha. Apanhados a descansar, os pardais saíam “meda fora” com o barulho, mas esbarravam contra a rede e resvalavam por esta abaixo, sendo apanhados no fundo pelo “saco”, de onde dificilmente saíam. Quando deixavam de sair aves da meda, enrolava-se a rede para depois tirar do “saco” os pardais um a um e enfiá-los num saco de pano. Eu só segurei no “gasómetro” para “dar luz à operação”, mas não tive direito à “rojoada com pardais”.

Depois ainda lhe disse que, pela mesma razão, quem tinha pombas costumava fazer “arroz de borrachos”, nome dado aos filhotes das pombas. “Pombas?”, perguntava ela muito chocada”. “É isso mesmo. Sabe porquê? Porque eram comida, melhor ainda, carne muito rara para a maioria das pessoas de então”.  

Estive em Angola há muitos anos andando entre Luanda e Malange a estagiar sobre a cultura do algodão. Quando estava pela capital era normal conviver com alguns amigos durante horas, com os dois pés debaixo da mesa de uma esplanada qualquer, a beber cerveja “Cuca”. Sempre que me lembro disso, o que me vem de imediato à memória é o facto de, ao pedirmos uma rodada de cerveja, a acompanhar vinha sempre um prato de camarões, de dobrada, moelas e até passarinhos fritos, tudo de graça, mas muito, muito picante, por forma a estimular o consumo de cerveja. E se resultava!!! Bastava ver a quantidade de vezes que cada um dos clientes ia à casa de banho … 

Ao pensar em tudo isso, hoje ponho-me a pensar no “caminho” que fiz na minha atitude perante as aves, entre muitas outras coisas. Nesse meu “caminho”, as aves significaram várias coisas à medida que fui crescendo e tomando consciência deste mundo de que faço parte. Em criança, eram um “hobby”. Conhecer-lhes todos os hábitos, descobrir-lhes os ninhos, tirar filhotes de melro para criar em gaiolas, tal como apanhar pintassilgos e pêgas nas mais diversas armadilhas. Alimentá-los e fazer deles “cantores”. E caçá-los à fisga, um acaso tão raro por falta de habilidade e pontaria. Nunca me tornei um caçador de espingarda de chumbo, se bem que tenha experimentado com a arma de um amigo. Desisti logo por achar que era uma matança sem utilidade em luta desigual. Com o passar dos anos, reconverti-me e passei a ver nelas uma das coisas mais belas da natureza, algo que temos de defender e proteger desse perigoso animal que é o homem. A caça, os pesticidas, todo o tipo de químicos e a destruição constante dos seus habitats naturais, fizeram desaparecer na região já muitas espécies de aves que foram as minhas companheiras em criança ou ficaram reduzidas a poucos exemplares, raros sobreviventes num ambiente que lhes passou a ser hostil. Hoje quase só se veem pardais e melros em quantidade significativa e passamos a ser “invadidos” por gaivotas que nunca pertenceram a esta região e só aqui vêm parar atrás da comida das lixeiras e aterros sanitários, por escassear o seu alimento natural no mar: o peixe.

Ao pensar nos “rojões com pardais” e nas duas caçadas noturnas em que participei, hoje já não fariam sentido e seriam condenáveis se existissem, se bem que as compreendo, aceito e não me atrevo sequer a condenar naquele tempo, pela vivência, necessidade, conhecimento e condicionantes dessa altura. Julgar os hábitos culturais de outrora à luz dos conceitos de hoje, seria de uma arrogância bacoca que ignora a evolução e o “caminho” que a sociedade teve de fazer para chegar até aqui e ser o que é. Mas só “vemos” hoje as coisas de “outra forma”, não aceitando que se façam caçadas de pardais em massa para comer com rojões como muitas outras coisas, conceitos e princípios porque, geração após geração, foi sendo “feito esse caminho”.   

Aliás, seria natural e compreensível que, mais de meio século depois, o ser humano protegesse com maior cuidado as aves, tal como o meio ambiente, do que no meu tempo de criança. Mas, as caçadas noturnas de pardais e outras aves para alimentação ou a apanha de outras para criar em cativeiro, foram bem menos prejudiciais para essa classe de animais do que agora são os efeitos causados pela poluição em geral, e os pesticidas em particular, bem como pela destruição dos habitats, até pelo elevado nível de informação que possuímos e pelo cuidado e (in)consciência que todos nós deveríamos ter. Mas que não temos …

Tal como não temos desculpas …              

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