Haja respeito e compreensão por eles …

O senhor Joaquim está no hospital. Foi internado ontem. Quando a enfermeira lhe perguntou a idade ele retorquiu em francês: “quatre-vingts”. Como não compreendeu, perguntou à colega: “O que disse ele”? Ela respondeu que o senhor Joaquim tinha oitenta anos. Foi ao dar-lhe banho que a segunda enfermeira ouviu parte da sua história de vida num francês que foi compreendendo a espaços, mas de onde percebeu que ele esteve quarenta e cinco anos como emigrante em França e só a doença da mulher o fez regressar à terra natal onde deixara duas das seis filhas que tem. Por lá trabalhou na construção civil todo esse tempo e ficou-lhe atravessado no pensamento e no instinto a língua francesa, apesar de adotada à força da necessidade. Quando a filha o foi visitar à tarde, ao saber que falara em francês berrou com ele: “Tem de falar em português porque o pai sabe”. E, voltada para as enfermeiras, pediu para o obrigarem a falar na nossa língua. Aquela filha, que viveu tantos anos longe do pai, fruto das circunstâncias, não percebia que na sua cabeça o pensamento estava estruturado em francês por força dos quarenta e cinco anos a ter de o ouvir, falar e sentir e que, para agora encontrar as palavras certas na sua língua materna, tinha de as procurar no seu registo mental uma a uma, a conta gotas. Pior ainda, permitiu-se criticá-lo de ânimo leve, sem perceber a sua extrema dificuldade para falar em português ao fim de quatro décadas e meia de ausência, durante a qual só cá veio três ou quatro vezes. 

O João, que está em Inglaterra há mais de dez anos, explicava isso bem ao contar que até os seus sonhos já são em inglês, muito longe dos quarenta e cinco anos do senhor Joaquim como emigrante … 

É recorrente. Criticamos os emigrantes quando falam noutra língua, dizendo que “ele está-se a armar”, tal como os criticamos quando aparecem “montados num carrão”, que quase sempre mais não é do que a necessidade de afirmação do seu sucesso lá fora, uma forma de dizer “eu venci na vida”, uma manifestação de orgulho pessoal, sabe-se lá a que preço. Mas não temos noção desse preço e, ao criticarmos essa sua “afirmação”, quantas vezes não o fazemos com o sentimento de inveja por ele ter aquilo que nós gostaríamos de ter?

Ser emigrante, aquele emigrante que se muda para outro país mais ou menos distante, à procura de uma vida melhor, não é fácil, por mais letrado que seja. E, logicamente, quanto menor for a formação, mais dificuldades tende a encontrar na sua adaptação a outro país, outra língua, outra cultura. Que o digam todos aqueles que trabalham na construção civil por essa Europa fora, olhados e tratados (quase) sempre como “estrangeiros”, gente “menor” na sua escala social ou, se preferir, de grandeza. E já nem falo de tudo aquilo que passaram os nossos concidadãos nos anos sessenta e setenta nas primeiras grandes “levas” de emigração para França, em que iam praticamente às escuras para um país de que nada conheciam, nada sabiam, onde se falava uma língua estranha de que nada compreendiam, a reboque de engajadores que os exploravam e, demasiadas vezes, deixaram entregues a si mesmos em terra estranha. Na nossa estupidez, ainda tendemos a criticar aqueles que se fizeram ao caminho e deixaram tudo para trás na busca de uma vida melhor, a começar pela casa, família e amigos. Um preço demasiado alto para quem quis levantar a cabeça e sonhar com outro futuro … 

Um desses que por lá labutava dignamente na ânsia de ter um futuro mais promissor do que tivera por estas bandas, numa das suas visitas à terra natal ouviu várias dessas críticas de uma das suas irmãs mais queridas. Nessa noite, chorando convulsivamente abraçado ao pai, desabafava sentido: “Se ela soubesse o que é estar longe da família? Se sonhasse o que é sentir-se sozinho em terra que não conhecemos e onde somos vistos como intrusos? Se sentisse o que é precisar de uma mão amiga, alguém a quem recorrer sempre que precise, ainda que seja só para desabafar um pouco e não ter com quem? Não tem noção nenhuma do quanto se sofre, do quanto nos privamos, das coisas simples de que tivemos de abdicar. Não sabe o que é perder o envelhecer dos pais e amigos, o crescer dos filhos, os aniversários, casamentos e até funerais de gente de quem gostamos” …

Desengane-se quem acha que ser emigrante não tem um preço. Oh se tem e como é elevado … porque é um ato de coragem sair da zona de conforto para ir em busca de uma vida melhor, deixando para trás mulher, filhos, pais, amigos, casa, a vida que conhece e que o conhece. Porque é disso que se trata. Ir à luta, se não se tem cá como. Um salto no desconhecido, tendo de se fazer forte por mais fraco que se sinta, porque não pode olhar para trás, desistir, falhar, fracassar. E quando a vida lá não é o “paraíso” sonhado, porque se encontrou um patrão que não paga e explora, quando não um compatriota que se aproveita da sua necessidade, ao comunicar para casa, diz-se sempre que “está tudo bem”, “isto aqui é um paraíso”, porque não se quer fazer sofrer aqueles que se amam e ficaram cá, pois já basta o seu drama. E isso é tão verdade para um emigrante português como para qualquer outro.

E a prová-lo está a Marta, cabo-verdiana que reside cá. Apesar de não ter uma condição económica desafogada, sempre que quer tirar fotos para enviar à família, veste-se bem para dar um ar de sucesso. Como vai enviando com regularidade algum do pouco dinheiro que ganha e lhe sobra à família que por lá ficou, para que eles “saibam que ela está bem”. “Porque eu vim para ter cá uma vida melhor e poder ajudá-los. E é isso que eles esperam de mim”, não se inibe de afirmar.

Apesar de ter passado ao lado duma oportunidade para o ser, não sou nem nunca fui emigrante, embora tenha estado afastado da família ao longo de dois anos como militar, em Moçambique, o que não é bem a mesma coisa. Em comum, só o afastamento e ausência. Por isso, tudo o que digo baseia-se no contacto direto com alguns deles, cá e lá fora e em variadas condições, mas sem ter vivido e sentido esse “carregar do fardo”, o estar só e doente no meio da multidão e “não ter quem nos faça um chá ou dê um pouco de atenção”, como dizia uma nossa conterrânea. Quantos homens estão lá enquanto a família está aqui, a milhares de quilómetros de distância? Não é o telefonema diário (se for possível) que substitui a presença de quem se ama, de quem falta para conversar, discutir, afagar, ajudar nas pequenas coisas da vida que precisam do contributo presencial do “outro”.

Indiscutivelmente, somos um país de emigrantes. De tal forma, que (quase) todos nós temos alguém, pai, mãe, filhos, netos, primos, tios, amigos e outros mais, que por lá andam, de quem sentimos ausência, saudade, falta. Saibamos estar à altura do seu sacrifício e respeitá-los sempre. Sem preconceitos, sem invejas, sem falsas superioridades …

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