Vivemos fora de horas …

São duas da manhã. Estou com a televisão e o computador ligados e ora deito o olho a uma como o sentido ao outro. A Luísa, hipnotizada pelas imagens que passam na televisão, não olha para o lado. Paro e penso que, em criança, neste momento, já teria dormido, pelo menos, cinco horas. Eu e a família. Depois de brincar na rua e da minha mãe conversar com os vizinhos à porta de casa, às dez da noite já estava na cama. Aliás, no inverno ainda ia mais cedo. Não havia televisão. Só no quarto dos meus pais é que “morava” um rádio grande, mas já não era hora de ouvir a Emissora Nacional nem o Rádio Clube Português. E até a eletricidade (nas casas que a tinham) àquela hora baixava de potência, dando uma luz fraca e trémula, quando não ia abaixo de vez. Em muitas ocasiões, tínhamos de recorrer às velas ou então aos candeeiros a petróleo. Dormíamos em sintonia e ao ritmo do relógio natural, noites de sono profundo e repousantes. 

Assim foi anos a fio, até o pai trazer para casa uma caixa de cartão pesada e de grande dimensão, onde vinha essa inovação tecnológica, sonhada e desejada: um aparelho de televisão. Foi um momento de euforia para toda a família porque já não tínhamos de ir ao Café Avenida, em Lousada. Só não sabia nesse momento que a “fatura” a pagar viria depois. A partir de então, deixei de ter o sono em sintonia com a natureza e o relógio interno, sendo todos os dias retardado até ao final das transmissões. Nos primeiros tempos a programação terminava relativamente cedo, por volta das onze da noite e, por isso, nem se notava muito, apesar de ficarmos “agarrados” e de olhos fixos no ecrã para ver tudo, desde o telejornal aos programas de variedades, das noites de teatro (em direto) às “Charlas Linguísticas” e mesmo às “Conversas em Família” do Marcelo Caetano. A televisão dominava a nossa atenção de forma avassaladora. “Consumíamos” tudo. Até a publicidade, com anúncios mais ou menos originais. 

Mas, pouco a pouco, os horários foram-se alterando, no princípio alongados até à meia noite e uma da manhã, para descambarem nas atuais emissões contínuas com uma vasta e variada gama de canais, programas e tentações, que incentivam constantemente a que façamos parte das audiências, (quase) não nos deixando tempo para dormir. E para isso, inventam os programas mais incríveis, usando criatividade, originalidade e talento, às vezes até, estupidez e burrice. Porque vale tudo para conquistar a atenção de todos. E nós, acomodados no sofá, alinhamos (quase) sempre, se bem que alguns programas mais não são do que uma boa forma de nos chamar “idiotas”. Se antigamente as sessões ou noites de cinema na televisão começavam e terminavam entre as 21 e as 23 horas, hoje quase nunca se iniciam antes da meia noite, normalmente até bem mais tarde, para terminar às tantas da madrugada. Para quem gosta de cinema, é uma tentação enorme que se paga com uma noitada. 

E as consequências? É claro, transformaram-nos em “corujões” e os especialistas clínicos dizem que temos chances de morrer mais cedo do que os “madrugadores”. Tantas são as noitadas que, muitas vezes, sinto que “ando a tirar o curso de vampiro” …

Os seres humanos são animais diurnos desde o tempo das cavernas: trabalham de dia e descansam de noite. Daí que, aquilo a que alguns cientistas em linguagem simples chamam de “relógio biológico”, que existe em todos nós, faz com que ao acordarmos depois de uma boa noite de sono tenhamos mais energia e, quando desaparece o sol e a noite cai, tendemos a ter sono, o que vem de encontro ao facto do sono noturno ser o mais reparador. Afirma-se ser importante esse respeito pelo “relógio biológico”, pois há uma relação direta com o sol e a importância da quantidade de tempo que se passa sob a ação da luz natural. Dizem até que o nosso “relógio” foi feito para “conversar com ele …  

No entanto, com a evolução da sociedade, a natureza foi contrariada. Ao inventar a lâmpada elétrica, Thomas Edison mudou por completo a relação da espécie humana com a noite e o sono. Ao fazer da noite dia, trocou-nos os horários de sono e passamos a andar desajustados, porque continuamos programados para descansar de noite. É o que dá os muitos milhares de anos de evolução da espécie …

Mas, pela necessidade crescente de trabalhar e viver “fora de horas”, foi necessário refazer horários, alterando muitas vezes essa ordem natural, para ajustar as coisas por forma a que o “relógio biológico” fosse ficando em sintonia com o “relógio social”. E foi acontecendo gradualmente. A noite, que era quase só para descanso do homem, foi sendo aproveitada de forma contínua e continuada para trabalho, entretenimento, estudo e outras atividades do ser humano, fazendo com que este tenha, em função das suas atividades, ajustado o seu “relógio interno” ao seu “relógio social”. Assim, muitos de nós fomos “reprogramados” e passamos a estar divididos em três grupos: os madrugadores, os notívagos e os mistos (a maioria). 

Posso dizer que, nesse aspeto, fui feliz, por ter vivido ainda de acordo com o meu “relógio biológico”, deitando-me à hora que ele dizia ser de sono e acordando quando o determinava, em regra ao nascer o dia para usufruir o mais possível da luz solar. E, não tenhamos dúvidas, que as pessoas que (ainda) podem respeitar os seus ritmos internos, dormindo ou estando acordados, são mais felizes, se bem que já não há muita gente que se possa gabar disso. É que, quem comanda e dá “corda” ao nosso “relógio”, é (quase) sempre a sociedade.

Eu disse que “fui” feliz ao viver ao ritmo da natureza … quando era jovem. Mas esse ritmo foi sendo trocado sem que o meu organismo acompanhasse totalmente essa mudança. E hoje, mais que nunca, ao deitar-me diariamente entre a uma e as três da manhã por “força das circunstâncias”, sinto o meu velho “relógio” reclamar por não estar a viver em sintonia com ele, num “atraso” que chega a ser de horas. Se eu chegasse assim atrasado quando ia trabalhar e tinha patrão, não tenho dúvidas: era despedido. Por isso, já me convenci que um dia este “relógio biológico” cansa-se dos meus “atrasos” e vai mesmo despedir-me e “pôr-me no olho da rua” …   

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