Curar um mal … e arranjar outro …

Algumas das recordações de criança e jovem adolescente que tenho prendem-se com as “mezinhas caseiras” com que o cidadão comum, especialmente as mulheres, tratavam algumas “maleitas”, doenças e indisposições. Era vulgar “talhar-se as dadas”, “coser o pulso” ou até “benzer um bijego”, comer hortelã com o caldo verde para combater as lombrigas e “levantar a espinhela” como me fez a minha avó no dia em que me queixei de uma dor “na boca do estômago”. Para aqueles que “bebessem acima da conta” ou “comessem até lhe chegar com o dedo”, o que quase só acontecia em almoços de casamentos – o “dia de tirar a barriga de misérias” –  mais hora menos minuto, o mal estar do estômago tornava-se insuportável. Era preciso aliviar a pressão na barriga e a forma mais comum de tirar o incómodo que isso ocasiona era provocar o chamado “vómito induzido”. Para isso, bastava “meter os dedos na goela” e, para a maioria das pessoas, funcionava de forma imediata. Dizem os técnicos que os dedos estimulam um nervo que percorre o pescoço e este, por puro reflexo, induz o vómito. Ainda vi isso em duas ocasiões com dois homens que comeram, comeram e comeram até não poder mais. Mas, como ainda não tinham saciado o seu desejo psicológico de comida, nesse tempo de difícil acesso, num canto do quintal esvaziaram o “depósito” naturalmente e, na verdade, depois de aliviados, voltaram ao repasto … e à luta. 

Confesso que nunca o consegui fazer, apesar de o ter tentado em dois momentos quando me parou a digestão. Acho que não sou capaz de chegar com os dedos ao ponto da goela onde está o tal “botão” que despoleta o vómito. Provavelmente engoli o meu “botão” e não tenho como o fazer ….

Entre os melhores tempos da minha vida estão sem dúvida os cerca de nove meses (e não foi para ter parto nenhum) que vivi em Angola, entre Luanda, Catete, Malange e a Baixa de Cassange. E foi por pouco que não me tornei um “retornado” … Depois de passar algum tempo em Malange em trabalho de campo, regressei a Luanda para efetuar algumas diligências no Instituto do Algodão de que dependia e fiquei alojado na Pensão Lusitânia, junto ao Mercado de S. Paulo, onde se hospedava também o meu colega Zé Teixeira e o amigo e conterrâneo Zé Duarte que ali estava a cumprir serviço militar. Um trio de Zés… Apesar de se comer bastante bem na Pensão, que servia sempre sopa, dois pratos e sobremesa com tudo à descrição, no final do jantar e sistematicamente, um de nós lançava o mote: “Vamos ao cinema”. E os três rumávamos em direção à casa de espetáculos mas, ao fim de dez ou vinte metros, também era certo e sabido que outro dava novo palpite: ”Sete escudos teus, sete escudos meus e sete escudos aqui do Zé, dão para muito camarão e muita cerveja. Vamos para a Baixa…” E o cinema passava à história dando lugar a uma noitada de cerveja e camarão numa esplanada no meio do jardim, ainda com o jantar por digerir… Loucuras de gente com pouco mais de vinte anos e, talvez por isso, com pouco menos juízo.

Alguns dias antes da data prevista para o embarque, durante o jantar disse aos dois: “No regresso ao continente vou levar uma coisa que não trouxe… “E o que é que vais levar”, perguntou um deles? “Uma grande constipação”, respondi. “Nem de propósito”, disse o Zé Duarte. “Tenho um remédio que te tira a constipação num instante. Mandaram-me de casa uma garrafa de aguardente e vai ser a tua cura”. E ficou logo ali combinado efetuar o “tratamento” depois de regressarmos da habitual ronda do camarão e cerveja. Assim, quando voltamos, vestimos os pijamas e sentámo-nos na cama. O Zé Duarte tirou a garrafa da mala, abriu-a e pô-la a girar, de mão em mão, de golada em golada. A conversa, intercalada com goles de aguardente, fez com que a garrafa chegasse ao fundo. Já preparados, fácil foi entrar na cama e adormecer. Porque será que foi tão fácil???…

Quando acordei na manhã seguinte, a constipação tinha desaparecido por completo, mas, em contrapartida, parecia que tinha o estômago a arder como se tivesse engolido fogo. Tive de me agarrar à barriga e apertar, para dar algum aconchego. Foi nessa figura que apareci no Instituto, com um ar sofredor e a segurar o estômago. Um dos funcionários ao ver-me naquele estado quis saber o que se passava e tive de lhe contar a história do dia anterior. Quando acabei, disse-me que tinha uma receita para resolver o problema “enquanto o diabo esfrega um olho”: “Duas aspirinas tomadas com uma Quick gelada (a Quick era uma espécie de Seven-up angolana). Mas, atenção, precisa ter a casa de banho por perto” …

Como estava atrapalhado e com aquele fogo que não parava de me queimar, não perdi tempo. Saí do Instituto, fui à farmácia comprar as aspirinas e entrei no café mais próximo. Antes de pedir a Quick, fui ver onde ficavam as casas de banho por precaução, pois não queria “chamar pelo Gregório” ali no meio do café. Depois, mal engoli os comprimidos com uns goles da Quick, fui andando para o WC. E ainda bem, pois já tive de correr para não “lançar a carga ao mar” antes de chegar ao lavatório… Na realidade, a lavagem foi rápida e completa. De tal forma que, minutos depois, já tomava o pequeno almoço ali mesmo no café, como se nenhum mau estar me tivesse afetado… 

Nunca mais estive em situação de precisar desta “receita milagrosa” e só sei o que o funcionário do Instituto me disse e o resultado da única vez que a pus em prática sendo eu a cobaia. Pela experiência vivida, resultou muito bem e recomendo-a a quem está indisposto por falta de controle nos comes e bebes ou por “algo que lhe caiu mal” e está a precisar de “deitar a carga ao mar”. É uma receita a ter em conta por ser fácil, rápida e eficaz. E não tem de pagar consulta …  

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