Lições para o Caminho e… a vida

Estou de regresso a casa depois de me ter feito ao Caminho. Porque é a “casa” que o Caminho nos faz regressar, passado o sofrimento e as dores por que passa o caminhante de muita estrada. E, para quem sai do Porto de mochila às costas com o essencial (e algum supérfluo na falta de experiência), são duzentos e quarenta quilómetros a pé por estradas, avenidas, ruas, vielas, calçadas, carreiros e trilhos, feitos de subidas e descidas através de cidades, vilas e aldeias, por campos e montes, vinhas e carvalhais, seguindo as setas amarelas que indicam o norte, a direção e o destino. Nas vésperas, a incerteza de resistir ao desafio pela falta de preparação física para tão duro teste. Animava-me a força do querer e a última mensagem do “Peregrino Lider”, um alento a quem parte na motivação espiritual e que não resisto em divulgar (que me perdoe a inconfidência …). 

“Está declarada a “Ultreya y Suseya”, o mesmo que dizer: para a frente, na busca de uma meta de vida que, com fé, será sempre alcançada; para cima, na busca de uma realização espiritual. Era assim na Idade Média, será assim para um peregrino hoje e amanhã. Depois disto, só os fracos fenecem (e eu posso ser o primeiro deles…).

Quem está fica e faz o Caminho e quem não está seguirá no nosso pensamento. O destino é Santiago e o campo das estrelas. Em boa verdade o primeiro milagre do Santo já se operou comigo, quando me obrigou a sair de mim (da instalação da vida, do conforto, das coisas fáceis ou mais acessíveis, etc….). Às vezes é preciso isso: “sair” para “ver”. É como subir à montanha.

Levarei comigo os que partiram e os que, no reino dos vivos, gostariam de ir sem o poder fazer. Que cada um busque, pois, a sua âncora ou “leitmotiv” (motivo condutor) para o Caminho.

Levo no peso da minha bagagem a simbologia do ser pecador. Cada passo dado em direcção ao destino me recordará isso.

Levo nas noites mal dormidas nos albergues o teste necessário à certeza de que quero alcançar o destino.

Levarei no corpo, nas pernas e nos pés cansados, quiçá magoados, o derradeiro teste do meu querer e da alegria de conseguir chegar. 

Se “cair” no Caminho sei que seguirei. Retomo ali, nesta ou noutra vida. Para mim já não há mais regresso. Abraçarei Santiago.

Certezas? Sim, num grupo familiar que soube responder à chamada e se fez ao Caminho. Chegaremos? Claro que sim!”

Até parece que o número nove era um bom presságio. Foi num dia nove, às nove horas da manhã, que o grupo de nove pessoas se juntou frente à Sé do Porto como “Peregrinos por Santiago” (e nove foram os dias que demoramos a chegar e abraçar o Santo). Todos eles eram maridos/esposas, tios/sobrinhos e irmãos. Todos estavam em duas destas situações, pelo menos. Só eu era “o primo”. O “Peregrino Artesão” distribuiu os “bastões”, um seu trabalho manual em madeira natural. Com as “credenciais de peregrino” para carimbar ao longo do “Caminho”, as “vieiras” penduradas na mochila, símbolo de Santiago e já com mochilas às costas, instalados nas escadas laterais da Catedral fizemos pose ante a objetiva do Alcindo para documentar em imagem fotográfica a partida do Porto e o ritual do grito “Por Santiago”. E, a partir daí, “fizemo-nos à estrada”, por Santiago.

Seria maçudo fazer aqui o relato desses nove dias a caminhar e dizer que no final fiquei com a “credencial de peregrino” onde colecionei carimbos da minha passagem, a “vieira” como símbolo do Santo e do Caminho, o bastão personalizado pelo “Artesão” e a “Compostela”, o certificado em como fiz o Caminho a pé a partir do Porto, emitida pela “Oficina do Peregrino”. O significado do Caminho vai muito mais além disso. Estava preparado? Não, nem física, nem mentalmente. E essa consciência tomei-a ao longo da jornada, porque é importante que o caminhante conheça os seus limites, seja persistente e se dispa por completo do supérfluo. Mais importante que chegar ao destino, Santiago de Compostela, é a jornada que nos leva até lá e o caminho que cada um faz. Porque cada um faz a sua jornada, como tem a sua vida. E lida com as dificuldades do Caminho como as da própria vida, duas faces da mesma moeda. Reclamando ou aceitando, com má cara ou tranquila e pacientemente. 

A força mais importante não é a das pernas, que tantas vezes pedem clemência, mas da mente, na persistência, capacidade de superação e força de vontade. Em muitos momentos é preciso ignorar a dor para prosseguir, as irregularidades do piso para caminhar, os incómodos do tempo para não desistir. A maior lição desta peregrinação veio-me da mochila que carreguei às costas, como símbolo do que carregamos na vida. O “Lider” dizia que nela levamos “o peso dos pecados”. O seu peso foi decisão minha, com tudo o que lá meti, necessário ou não. Só quando tomei consciência que cada grama tornaria a caminhada mais penosa, fui capaz de me despojar do supérfluo, ainda que isso tenha significado ter de lavar roupa no fim da jornada para secar à noite ou no dia seguinte pendurada na mochila, “um estendal em movimento”. E é esse despojamento que precisamos de fazer na vida, libertando-nos do “excesso de carga” que carregamos no dia a dia. Seremos capazes? 

Que posso dizer sobre o Caminho? Mais do que uma peregrinação, o Caminho é uma lição para a vida, um compêndio da sabedoria que deixamos de lado por comodismo, arrogância, inveja e vaidade. O Caminho, faz-nos sair da nossa zona de conforto e do comodismo em que formatamos as nossas vidas, voltando às origens.

Caminhar é uma oportunidade para meditar e refletir sobre a vida e praticar o despojamento do que não é essencial, só com a ajuda do cajado e da mochila. E o cansaço da caminhada chega a ser relevado com a saudação frequente de outros peregrinos ou não com que nos cruzamos, desconhecidos, mas solidários, com a frase motivadora e generosa de “Buen Camino”.  

Um amigo perguntou-me se ainda me sinto peregrino. Respondi-lhe com uma frase feita bem conhecida, que expressa o meu sentimento: “Uma vez peregrino, é-se peregrino para sempre”. E, como peregrino que vou continuar a ser, espero conseguir aplicar a aprendizagem do Caminho no “caminho da minha vida” …  

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