Uma viagem acidentada…

Há viagens que nos ficam mais na memória, às vezes não pela beleza das paisagens, mas pelos insólito a que estivemos sujeitos. Dois anos depois da revolução em Portugal, vivia-se um clima difícil e muito tenso, sem sabermos se, ao sair de uma ditadura, iríamos cair noutra. Casados há pouco mais de um ano, eu e a Luísa decidimos ir visitar a Madeira, levando “à boleia” alguns familiares de um e outro lado. Ao todo, éramos meia dúzia de turistas. Como não havia voo direto do Porto para o Funchal, fomos apanhar o avião em Lisboa. Na hora do embarque, quando chegamos junto do avião deixei-me ficar para trás dando prioridade à família e aos outros, acabando mesmo por ser o último a entrar no avião. Como não havia lugares marcados, cada um dos passageiros foi procurando acomodar-se à medida que entrava. Então eu, que era o último, já tive de procurar lugar no avião todo, mas… nada, não havia lugar para mim. Fiquei de pé no corredor, junto à cadeira onde a Luísa estava sentada. Passaram as hospedeiras de bordo para trás e para diante, apercebendo-se que eu “estava a mais”. Por isso, o comandante veio ter comigo. Cumprimentou e disse: “Peço muita desculpa, mas é incompreensível que tenham vendido um bilhete a mais do que a capacidade do avião. Isto só acontece porque estamos a viver um período revolucionário na empresa, em que as pessoas se estão a preocupar mais com plenários, greves e outras manifestações, do que em cumprir as suas funções laborais com dignidade. A TAP nunca foi isto…” E, para minha surpresa, perguntou: “Não se importa de ir comigo na cabine do avião?” Claro que não ia perder a oportunidade que me era oferecida e aceitei de imediato. Daí a instantes, estava sentado junto do comandante e do co-piloto. Mas o avião continuou parado. Então, o comandante explicou-me: “Não vou levantar voo enquanto não vier a refeição que falta, já que temos uma pessoa a mais. Já avisei os serviços de terra”. Meia hora depois, com o meu “tacho” a bordo, levantamos voo rumo à Madeira levando a meu lado um comandante muito simpático que foi o tempo todo a explicar-me para que serviam todos os botões e alavancas. Sempre que mexia num, dava-me conta da sua função. A viagem foi espetacular, comigo ali sentado no “bico” do avião.

Já quase na Madeira, disse: “Vamos ter de regressar a Lisboa. Há muito nevoeiro no Funchal e não temos condições para aterrar”. Deu meia volta e regressamos à Portela. Ao aterrar, encaminharam-nos para uma sala de espera isolada, onde ficaríamos até haver condições de voltar a voar para o Funchal. Deixei entrar a família à minha frente e, no momento em que eu ia atravessar a porta de entrada, dei meia volta e fiquei cá fora a passear de um lado para o outro, enquanto os outros passageiros iam entrando. Porque recuei? Foi instintivo. No momento em que me aproximei da porta vi um polícia com um daqueles detetores de metais com que nos percorrem o corpo, usando-o em todos aqueles que entravam na sala. Lembrei-me então que não podia entrar. Era perigoso. Seria apanhado em flagrante e, na “febre revolucionária” que se vivia então, seria um problema grave. O que foi? A sede da empresa onde trabalhava ficava em Lisboa e, um dos empregados, como sabia que eu ia passar pela capital, tinha-me pedido para lhe arranjar seis balas para uma pistola pessoal. Nesses tempos conturbados, era conveniente não ter só a arma …  e foi fácil comprar as balas. Coloquei-as numa pequena caixa de plástico, daquelas onde vinham os rolos fotográficos. Só que, quando cheguei a Lisboa, nunca mais me lembrei de dizer ao Soares que tinha a sua “encomenda”. Entrara no avião com ela no bolso, fora até ao Funchal, regressara e ninguém detetara nada. Felizmente. 

Mas, ao ver o polícia a rastrear os passageiros, acordei. “Alto e para o baile, posso ser apanhado”, disse cá para mim. Enquanto pensava, só olhava para a forma como o polícia fazia o rastreio: passava o aparelho pelo corpo acima e abaixo, primeiro à frente e depois atrás. Os passageiros iam entrando e, às tantas, só estavam dois à minha frente. E depressa chegou a minha vez, não dando para fugir mais. Agarrei a pequena caixa na mão, fui direito ao polícia e, quando ele se preparava para me revistar com o aparelho, levantei os dois braços ao alto, por forma a que o sensor ficasse bem longe da minha mão. O sensor percorreu-me acima e abaixo toda a frente do corpo e depois repetiu a manobra nas costas. E o polícia, fez-me sinal para seguir. Lá dentro, a família estranhou o meu comportamento. Quando cheguei, perguntaram-me. “Estás tão amarelo. O que se passa?” Pedi para nos afastarmos da entrada e só depois contei o sucedido. E as balas? Despejei-as num vaso enorme que estava num canto da sala. Uma hora mais tarde, regressamos ao avião e instalei-me novamente na cabine junto do comandante que, dessa vez, conseguiu fazer-nos aterrar na Madeira. Apesar de estar a grande distância temporal, ainda me recordo que as férias foram excelentes. Mas, mesmo com toda a simpatia e boa vontade do comandante do avião, a “aula de pilotagem” não me habilitou para conduzir aviões …

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