“Cócórócócó”!!! Acordo estremunhado ao cantar do galo. Mal consigo abrir os olhos. “Cócórócócó”, insiste ele, como despertador que não foi desligado e teima em cumprir a sua missão. Agarro no telemóvel, primo a tecla e o mostrador ilumina-se: “4H00”. É de madrugada e o galo tem um problema, pois está a “despertar” fora de horas, se bem que quem fica com o problema sou eu. Precisamente quando estava na fase daquele sono profundo que nos faz descansar, é que vem este bicho estúpido fazer barulho. E logo hoje, que deixei a janela aberta e a persiana meia corrida para entrar o ar fresco da noite e deixar o quarto mais suportável!!! Afinal, o que entrou foi o canto do galo, bem mais alto … É a fatura que pagamos por estarmos no limbo, no “nim”: nem no campo nem cidade. No campo, a natureza segue o seu curso e a noite só é rasgada pelo luar. Não há luz artificial para enganar a natureza e o galo e ele canta só ao romper da aurora. Na cidade há luz artificial toda a noite, mas não há galos nem outros bichos para nos interromper o sono. E aqui, que “nem somos carne nem peixe”, temos luz pública a iluminar caminhos, mas também temos galos e outros bichos que alteram as rotinas com os “enganos” da civilização …
Mas não é só o canto do galo em horas inapropriadas que nos entra casa dentro, quando só devia entrar o sono.
Ainda há dias, às três da manhã, pelas frinchas entreabertas dos estores e sem pedir licença, infiltrou-se a voz rouca dum cantor africano para me acordar ao som da “quizomba”. Presumo que estivesse nalguma romaria da região onde eu não quis ir e achou por bem incluir-me no concerto, apesar de eu não estar interessado. Esta coisa de tocarem para quem está junto ao palco e para quem está em casa a quilómetros de distância merece uma pergunta: “E temos mesmo de gramar com aquilo que não pedimos”? Ainda se fossem “Cantigas ao Desafio” por cantadores populares ou mesmo o Quim Barreiros, apesar de me interromper o sono teria motivos para sorrir com a brejeirice das letras … para compensar a insónia. Agora “quizomba”!!! Como dizia o Flávio, só se for para dançar com “pele roçando a pele”, no mais importante movimento feminino que se conhece: “O movimento de quadris”. Não sei de onde vinha a música nem ninguém me perguntou se podiam incomodar o meu descanso num dia de semana. Também não estava à espera pois com certeza tinham licença, esse “papelinho mágico” que legaliza a possibilidade de poderem “chatear” os outros, mesmo que estejam a descansar, a troco duns euritos que não vão parar ao bolso dos lesados, mas ao “saco” que não dorme nem tem insónias.
E tudo isto para dizer que o sono, esse bálsamo reparador do nosso corpo, devia ser mais protegido, protegendo-se o silêncio nas horas de repouso natural. Os países mais evoluídos fazem-no, preservando a saúde física e mental de quem trabalha, porque sabem que só assim estão a defender a produtividade. Quem não dorme e não descansa, não pode produzir aquilo de que é capaz. Há três décadas atrás estive na Suíça integrado num grupo e dormimos em casa dum conterrâneo que fez questão disso. A sua maior preocupação connosco foi a de não fazermos qualquer barulho que pudesse ser ouvido no apartamento de baixo, pois seria motivo para lhe aparecer a polícia à porta e ter problemas. Ora, para quem ia de um país onde cada um achava que tinha o direito de fazer o “chinfrim” que quisesse sem “ter de dar cavaco a ninguém”, aquilo era ridículo. Mas, acabamos por cumprir as regras, como acabamos por fazer outras coisas muito bem quando estamos lá fora …
Trinta anos depois, apesar de termos um Ministério do Ambiente e montes de leis muito avançadas a que ninguém liga, a verdade é que estamos pouco ou nada melhor do que nessa altura. Na época de festas, que dura pelo menos seis meses, somos “assaltados” em casa pelo foguetório a horas impróprias, pelos berros bem amplificados e mais ou menos ritmados de todo o tipo de artistas, pela batida forte da música “tecno” dos bares de rua até ao nascer do sol e todo o tipo de ruídos festivos em dias que já extravasaram há muito os do fim de semana. E é o roncar de camiões a trabalhar de madrugada, dizem que para aquecer, mais parecendo que os motores estão dentro das nossas cabeças; são as conversas de clientes saídos de restaurantes, tascos e cafés após o fecho, parados na rua debaixo da varanda, que até parecem estar a falar dentro do quarto; são todos aqueles que, por razões diversas, se levantam de madrugada para viajar e falam alto, chamam, insultam, gritam e fazem acordar a vizinhança toda; e são os geradores, compressores e todo o tipo de aparelhos, feitos a pensar resolver um problema funcional sem pensar que criam um problema auditivo; são os “corredores de rua” montados em carro ou moto com os decibéis no máximo, como se fosse sinal de serem mais velozes.
Por norma, durmo com a janela e estores fechados, além dos cortinados, tentando não ser “violado” nem violentado pelo ruído que vem de fora. À Luísa, já lhe basta o suplício de aguentar o ruído dos meus “motores” feito “ressonar”. E a mim, ouvir pela manhã as rolas e os melros ao desafio, é “música” bem mais agradável para os meus ouvidos …
O Agostinho espera realizar o sonho de poder gozar das delícias de uma reforma antecipada em casa térrea isolada na encosta de um rio Douro qualquer, longe do ruído artificial da civilização, poder “deitar-se com as galinhas” e acordar com o chilrear matinal das aves. Sonha viver em harmonia e ao ritmo da natureza, afastado da civilização que nos trouxe noites mal dormidas, insónias, stress, medicamentos às carradas para combater esse flagelo de não dormir e, pior, não descansar. Já não nos “deitamos com as galinhas. Estamos mais perto da hora dos morcegos e tem fatura que estamos a pagar com juros. Respeitamos pouco o silêncio noturno e, consequentemente, todo o direito ao descanso dos outros.
Pois eu, como não tenho a sorte do Agostinho, vou continuar a deitar-me depois da Luísa adormecer, o que me afasta do “deitar-me com as galinhas”. Assim, dorme tranquila e fica livre de ouvir o meu “ronco”. Vou continuar a fechar muito bem as janelas e persianas pois, apesar de insistirem, não quero ouvir mais “concertos” na cama sem querer e sem sequer ver os “atributos da artista”. E vou rezar para que o galo mais próximo não acorde com os lampiões a acender e cante só ao nascer do sol.
Se conseguir, vou sentir-me mais perto da natureza, dormirei melhor e deixarei de ser um “zombie” pela manhã, feito “barata tonta”.