Nos olhos, no pensamento e nas críticas dos outros, nós somos bons ou maus, simpáticos ou arrogantes, espertos ou inocentes, tímidos ou “destravados”, competentes ou “abaixo de zero”. Somos o que somos, tão iguais e tão diferentes, numa diversidade de personalidades tão grande quanto variada. Mas há um lugar especial que tem o poder e a capacidade de nos tornar “especiais”, porque ali nos transformamos e assumimos novos poderes, novos conhecimentos, novas identidades que ninguém imaginava que tivéssemos. Nem nós mesmos. Ali somos outro, raramente nós. Somos juízes, treinadores de futebol, atletas de alta competição, comentadores desportivos ou analistas de política nacional e internacional, ativistas e contestatários, revolucionários,
moralistas, homens de ciência sem ciência nenhuma. É um lugar mágico que nos transforma como nenhum outro e, por isso, no dia a dia, fazemos questão de o ocupar, por pouco tempo que seja. Quem não experimentou essa sensação ao ficar “sentado no sofá diante da televisão”? Quem nunca sofreu essa metamorfose e se viu feito outro “figurante”, quando não “figurão”?
“Sentados no sofá” a ver um jogo de futebol da equipa do coração, não paramos de gritar: “Ladrão, não vês que é penalti?” ou “aselha, essa até eu marcava”. Lá está, tão depressa somos um árbitro melhor do que “aquela viúva negra” que corre no campo de um lado para o outro, como de repente ganhamos qualidades de avançado com veia goleadora de que tanto está a precisar o nosso clube. Se a equipa está a perder, o treinador “é um nabo, devia estar a jogar com dois defesas e reforçar o ataque” ou “tem de jogar com dois extremos”, já para não falar das vezes em que nomeamos os jogadores que devem entrar ou sair, criticar a tática ou o estilo de jogo. Se a equipa está a ganhar, “aquele gajo já devia ter metido um médio defensivo”.
Comodamente “sentados no sofá” a ver um jogo de futebol, se possível com uma cerveja na mão para nos dar inspiração e transmitir confiança, somos os melhores treinadores, jogadores, árbitros, dirigentes, adeptos, comentadores e até arruaceiros ou gorilas. Comemoramos aos saltos e com gritos de euforia ou insultamos tudo e todos, desde o guarda-redes ao roupeiro. Espumamos de raiva com cara de “esgroviados” ou temos um sorriso aberto a toda a largura da cara, como a pessoa mais feliz deste mundo. Roemos as unhas como quem quer poupar na manicure ou falamos como papagaios sobre as virtudes dos nossos jogadores, como se eles fossem “nossos” e “virtuosos”.
“Sentados no sofá” ouvimos as notícias do telejornal em que se dá conta das buscas da polícia judiciária à casa e escritório do político A ou do dirigente desportivo B, como suspeitos de corrupção, desvio de fundos ou tráfico de influências, presos e levados a tribunal onde lhe é aplicada a prisão preventiva ou outra medida menos gravosa.
E nós, sem estarmos documentados, conhecermos o que se passa ou termos acedido ao processo, tomamos posição imediata: “Eu bem dizia que ele era um grande ladrão” ou “esse artista nunca me enganou”. Ou ainda, se o “artista” for do nosso partido político, da cor do clube do coração ou doutra associação à qual estejamos ligados, assumimos uma posição contrária, de defesa clara e inequívoca “daquele santo” que merece uma estátua: “Vejam lá o que a oposição anda a inventar” ou “coitado do homem, o que ele tem de aturar destes invejosos”. E, com o “rabo” comodamente enfiado no sofá, julgamos, condenamos e ilibamos conforme o nosso próprio interesse no assunto, a nossa ligação ao “artista” ou mera simpatia.Ás vezes dou comigo a tomar partido, a dizer “é impossível” ou “já se estava à espera”, porque o sofá “dá-nos sabedoria” e “independência” (muitíssimo duvidosa, por sinal) para julgar os outros, mas insuficiente para nos olharmos a nós próprios. Isso já não interessa…
Pensando bem, com a televisão sempre ligada nem precisamos de ir trabalhar. Já nos basta o trabalho difícil e cansativo de “corrigir” os “imbecis” que temos de ver e aturar no pequeno ecrã. “Vejam lá se aquilo são maneiras de aparecer na televisão…” Com este, vamos ter de ser “consultores de moda” ou de lhe ensinar o “manual das boas maneiras” e as “boas regras da etiqueta”. Só os concursos televisivos já nos ocupam o suficiente: “Essa é de caras. O campeão europeu de futebol é Portugal. Toda a gente sabe” ou “como é que um gajo destes se mete num concurso se não dá uma para a caixa”? “Este gajo é um nabo” …
O sofá é um sítio “maravilhoso” para se ver telenovelas. Se possível, “entalado” entre mulheres, para se entrar no espírito da “coisa”. E ali, no sofá, tão depressa nos revoltamos contra o mau da fita que anda a enganar a miúda e a roubar a patroa velhinha, como choramos “feitos Madalenas” por aquela cara bonita feita “gata borralheira” não ter que comer nem sequer um pouco de leite para dar ao bebé, entrando no espírito da “equipa feminina” que nos envolve. Num filme de ação, tanto podemos optar por estar ao lado do protagonista como assumir as dores por aquele malandro que tem jeito para a ladroagem e rouba só ricalhaços bem “encanados”, convencidos e presunçosos, que até parece um cavalheiro encantador, merecedor de acabar por ficar com a moça mais bonita do elenco.
Sentados no sofá com “o nariz enfiado na televisão” e concentrados no “trabalho”, sofremos grandes transformações, passando de fracos a fortes, de estúpidos a inteligentes, de burros a sábios enquanto o “diabo esfrega um olho”. E somos capazes de alcançar os maiores “sucessos” sem termos de provar nada, sem fazer o mínimo esforço. Ali, o êxito é garantido. Pensando bem, se calhar, o melhor lugar para se “morar” …