O que faz correr o presidente?

Já estou a imaginar o cenário: um dia destes, o presidente Marcelo, depois de avisar a comunicação social para que as audiências sejam o mais alargadas possíveis, vais despir-se até ficar em cuecas no centro do Terreiro do Paço, em Lisboa, e armado com um chicote de cabedal, vai autoflagelar-se, deixando que a partir de certo momento sejam os representantes de cada uma das nossas antigas colónias a aplicar-lhe algumas centenas de chibatadas, como “compensação” pela sua parte na responsabilidade que ele diz que temos naquilo que os nossos antepassados fizeram de mal aos nativos de então. Não sei se essa sua vontade de que “Portugal tem de pagar pela escravatura em África” lhe venha de algum remorso pessoal por comportamentos menos adequados durante o tempo em que seu pai foi governador de Moçambique, se é a sua vontade de protagonismo ou se é mais uma “marcelice” como a que fez ao dono do Expresso e seu patrão quando escreveu um artigo no seu jornal a dizer “o Balsemão é lé-lé da cuca”. 

 Vale a pena ler o artigo que António Barreto escreveu no jornal Público sobre este tema das “reparações” e que desmonta todo o “excesso de zelo” de governantes e outros políticos quanto ao caso.

… “O que os portugueses de outros tempos fizeram e de que tanto se fala hoje inclui vários gêneros. Uns atos eram “o que se fazia”, muitos eram “as regras do jogo” ou até glórias, outros já eram crimes na altura. E também há obras que começaram por ser glórias e são hoje crimes. Com o tempo á fácil o bem transformar-se em mal e o mal no seu contrário. Confundir os géneros, tentar usar o mal e o bem dos outros, promover ou rebaixar hoje o que foi feito há séculos, disfarça, por regra, ambições contemporâneas, maus instintos morais e apetites políticos excessivos. Quem quer julgar hoje os reis e os escravos de há séculos, quer qualquer coisa. E não se trata apenas de bons sentimentos: quer poder, bens e poleiro.

Há décadas que, de vez em quando, a questão das culpas históricas e dos erros de outrora, assim como o perdão de hoje, estremece a crónica dos dias. Por vezes trata-se de uma espécie de candura, outras vezes, é uma nova forma de extração: as desculpas ajudam a obter um lugar na lista de compradores de minérios ou vendedores de armas. …

Finalmente, para todos, os que querem pedir perdão e desculpar, os que exigem recompensa e indemnização, os que recordam um passado de dor e os que evocam grandeza nacional, de todos temos esta espécie de busca desavergonhada de clientela política.

… Pedir perdão a quem? Aos africanos? Aos asiáticos? Aos índios? De quê? Porquê? Não conheço país que não tenha sido, pelo menos uma vez na história, conquistado ou conquistador, colónia ou metrópole. Como não conheço país, povo, Estado ou nação que não tenha escravizado, não tenha vivido com escravos ou não tenha vendido os seus. Não conheço povo, país, Estado ou tribo que não se tenha feito graças à luta, ao domínio, à servidão ou à conquista. Será que toda a gente tem de pedir perdão a toda a gente? Se os portugueses têm de pedir perdão aos africanos, aos mouros, aos árabes, aos índios, aos indianos e outros asiáticos, quem nos pede perdão a nós?

Pedir perdão a quem? Aos Estados? Às pessoas em abstrato? Às famílias descendentes de escravos? Como distinguir entre quem foi vendido, quem transportou e quem vendeu? Sabendo que muitos escravos foram vendidos por conterrâneos, vizinhos, comunidades rivais, nobres e ricos, notáveis africanos, asiáticos ou árabes, como distinguir entre aqueles a quem se pede perdão e os que devem ser condenados? Supondo que se sabe a quem pagar, Estado, empresa, Igreja, associação, tribo ou família, falta definir quem paga. O Estado? Os contribuintes? As empresas? Os milionários? …

Faz algum sentido exigir, da Grã-Bretanha ou da Universidade de Oxford, a devolução imediata da biblioteca do bispo de Silves, roubada por uns piratas e uns nobres ingleses no séc. XVI? Ou exigir a pronta devolução do “Cabinet de Lisbonne” composto por milhares de espécies, roubado por soldados e cientistas franceses no início do século XIX e atualmente no Museu de História Natural de Paris? Ou os muitos milhares de artefactos religiosos, sobretudo de ouro e prata, saqueados das igrejas portuguesas pelas tropas e levados para França? Se as autoridades portuguesas entendem tomar iniciativas relativamente aos países que os antigos, em seu tempo, pilharam, têm de começar já por nós e obter a devolução dos bens saqueados em Portugal.

Em vez de se indemnizar ou recompensar, não se sabe bem quem, nem quanto, o melhor que podemos fazer é receber bem os estrangeiros, os imigrantes em particular. O que é um valor em si, não uma compensação por malfeitorias passadas”.

Os defensores da cultura “woke” seguem a cartilha de começar por querer um pedido de desculpas, alterar a narrativa histórica, que sejam devolvidos objetos, derrubadas algumas estátuas e, finalmente, indemnizações a que chamam “reparações”. E o certo é que já temos políticos de joelhos em terra e mãos postas para pedir perdão como é o caso de Marcelo, Guterres e outros que dizem “servir o país”. Nem se lembram de perguntar quem vai “reparar” mais de um milhão de portugueses a quem puseram o rótulo de “retornados”, que tiveram de fugir “com uma mão à frente e outra atrás” para salvar a vida, espoliados de todo o património construído numa vida. Já para não falar na modernização, na educação de gentes e povos e em todas as infraestruturas e equipamentos públicos construídos, alguns deles que continuamos a pagar mesmo depois de já não serem nossos e que os países tomaram como seus.

Como diz António Barreto, “É verdade que podemos sentir emoção quando pensamos nos feitos dos portugueses ao longo de oito séculos. Mas os feitos são deles, não nossos. E os crimes deles a eles pertencem, não a nós. É mau princípio o de chorar culpas que não são nossas, ou devolver o que não roubamos. Não peço perdão a quem nunca fiz mal, nem pelo que não fiz. E não me gabo do bem que outros fizeram”. Por isso, o que faz correr Marcelo ao atirar a pedra, sabendo-se que não faz nada ao acaso e que “não dá ponto sem nó”?