A nova “Protagonista” cá de casa …

Com a cadela deitada ao meu lado, estava sentado no sofá da sala e a ser massacrado pelas notícias deprimentes do telejornal. Noutro sofá à minha frente, com o olhar fixado na Becas e inspirada pela postura de tranquilidade dela, a minha mãe comentou: “O cão é o melhor amigo do homem, mas nem sempre o homem é o melhor amigo do cão. Há cães que têm sorte e são bem tratados pelo dono, mas há quem trate os cães a pontapé e, mesmo assim, os cães continuam a ser-lhe fiéis. Nunca vi um cão a morder o dono, mas já vi donos a fazer aos cães pior do que se os tivessem mordido”. Mais uma vez, em um momento de maior estabilidade emocional e lucidez, do alto dos seus 101 anos de idade completados há poucos dias, ela transmitiu-me alguma da sabedoria acumulada, conseguindo até surpreender-me. Se a “memória de curto prazo” a atraiçoa – diria que “o gravador deixou de gravar” – a memória do passado continua bem viva.

Ainda ontem, depois de alguém contar que uma determinada mulher nossa conhecida, apesar de casada há pouco tempo, deixara o marido, ela comentou: “Antes, havia mulheres que eram muito maltratadas pelos “homens” e nalguns casos levavam muita pancada. Mas aguentavam o “homem” porque “parecia mal sair de casa”. Agora está muito melhor pois quando não se dão bem, cada um segue o seu caminho. Mas hoje, muitas vezes também abusam e casam e descasam tão depressa que até parece que só o fazem pela festa, pelas prendas de casamento e para “fazer raiva às amigas”. E julgava eu que ela não era tão observadora …

Sem grande esforço de memória, relembra algumas das conversas com o sogro, o meu avô paterno, e dos seus relatos dramáticos sobre a sua participação na Primeira Guerra Mundial. Confirmou o que eu já sabia de que ele acabaria por morrer vítima dos “gases” a que tinha estado sujeito no campo de batalha, pois a partir de certa altura um dos grandes sofrimentos dos soldados nas trincheiras foi a guerra química, com o uso dos “gases” (cloro, fosgênio e mais tarde o “gás mostarda”), “gases” esses que provocavam vómitos, queimaduras e a morte. Como nota curiosa, disse-me que o meu avô, que mais tarde se dedicaria ao comércio, até na guerra fez negócios, pois comprava cigarros num determinado local e depois vendia-os aos camaradas de luta nas trincheiras.

Embora num ou outro momento de maior cansaço a memória a traia e lhe crie alguma confusão, em geral consegue recordar factos de há 90 anos e mais, com toda a clareza. Ao relembrar a infância contou que então, quase só os “fidalgos” sabiam ler e escrever. Por isso, o seu pai, como era filho de lavradores (caseiros), em situação normal não frequentaria a escola. No entanto, por ser “manquinho”, a mãe mandou-o para a escola da Vila, a única que havia, onde fez a quarta classe enquanto ia aprendendo a arte de “tamanqueiro”. Já as raparigas por norma não iam para a escola, pois “não precisavam de aprender a ler nem a escrever” (só se fosse para escrever cartas ao namoro?), porque estavam destinadas a ter filhos e fazer o serviço de casa. No entanto, a sua mãe, apesar de não saber ler nem escrever, achava que todos os seus filhos deveriam aprender, fossem rapazes ou raparigas, porque ao longo da vida poderia ser muito importante. E foi assim que, não havendo uma escola na freguesia de Pias onde moravam, andou com as irmãs a aprender a ler, escrever, bordar, fazer renda e outras artes na D. Virinha, uma senhora que morada na Vila, estudara no colégio de Bairros e, como o pai morrera de repente, teve de “fazer-se à vida” para se sustentar a si e à mãe, passando a tomar conta de crianças. Diz ela: “Agora que toda a gente pode estudar até onde quiser ir, há muitos que não aproveitam essa oportunidade que nós nunca tivemos”.                                                       No último mês temos passado bastante mais tempo juntos do que é habitual e dou comigo a observá-la de perto seja quando está de olhos fixos na televisão a ver o telejornal que não gosta de perder, seja a caminhar à minha frente – e temos andado uns bons bocados – seja a comer com apetite qualquer comida tradicional – e ninguém a convence a comer algo que nunca tenha comido. E admiro-me como é que mantém firmes as convicções, a disponibilidade para sair e ir a pé ou de carro e o gosto por tudo o que é doce porque “o doce nunca amargou”. Como a sua perda de audição está mais adiantada que a minha e já “encostou” os aparelhos auditivos há muito tempo, coisa que eu copiei, para me fazer ouvir melhor coloco-me de frente para os lábios ajudarem a entender o que digo. 

Devo confessar que tenho razões para estar preocupado, porque ela “retirou-me todo o protagonismo” que eu julgava ter. Eu que ia aqui ou ali e as pessoas me cumprimentavam e davam atenção, quando andamos juntos, esquecem-me, quase me ignoram e a atenção é toda voltada para ela: “Vejam lá como é que esta senhora com 101 anos anda tão direitinha”! “Posso tirar uma fotografia consigo”? “Vai ter de me dizer o que é que come para chegar a essa idade”. E quando ela responde que come muito carne de porco, às vezes vem a pergunta de espanto, como se fosse uma coisa de outro mundo: “Come carne de porco”? E repetem: “Carne de porco”? Muito simpaticamente, concentram nela as atenções fazendo muitas perguntas a que ela vai respondendo, quando não se refugia numa afirmação: “Já não vou há muito tempo ao médico, não me doi nada e não me queixo de nada”. Passou a ser a “protagonista cá de casa”!

Claro que não me preocupa a questão do protagonismo e atenção que lhe dedicam (merecidamente) e, pelo contrário, sinto muito orgulho em continuar a tê-la na minha vida. A grande preocupação que tenho neste momento é que, no seu entardecer, consiga cuidar dela como ela cuidou de mim …