O rio Sousa está à venda?

É verdade, pelo que vi com “estes olhos que a terra há-de comer”, o rio Sousa deve estar a ser vendido aos bocados, com água, peixes, amieiros e lixo. Como é que eu não soube? Logo eu, que até estou interessado num bocado. Já falei com um “amigo” para me arranjar o Amial, entre o açude de Moinhos e o “fojo do sr. Mário”. Mais para cima já não me interessa, nem me diz nada, porque são campos onde só lá ia para “arrear o calhau” no meio do milho… Ora, esse “amigo” está muito “bem colocado” e é homem para fazer uma boa negociata pela “porta do cavalo”. Como se sabe, é sempre mais rápido e barato…

Como é que o Estado pode vender um pedaço de rio? Ai isso não sei, nem me interessa. Quero é ser dono daquele trecho de rio e usufruir dele sozinho. Também tenho a minha vaidade e um prazer danado de provocar inveja a uns “armantes” que costumam picar-me com as suas compras faustosas. E não me admiro nada que o Estado venda, até porque está a vender tudo o que pode (e que dá dinheiro) para “abater ao prejuízo”, que é como quem diz, à dívida, esse monstro que não tem princípio, muito menos fim à vista, apesar do anterior governo dizer que a diminuiu, mas só foi manobra contabilística … 

Já há uns anitos que andava com esta ideia “ferrada” na cabeça, mas nunca me atrevi a falar a quem quer que fosse, pois tinha medo de ser gozado. “Comprar um pedaço de rio? Essa não lembra ao diabo” seria a resposta mais esperada. Mas ontem acabei por desabafar com o tal amigo e, quando esperava uma resposta do gênero, fui surpreendido com uma pergunta: “E em que parte do rio Sousa estás interessado”? “Estás a brincar”, perguntei eu? “Não, nada disso. Não és o primeiro e já há partes ocupadas”. “Não acredito”, disse eu. “Então vem comigo e verás”, retorquiu. E lá fui eu no seu “Jeep todo terreno”, qual S. Tomé à espera de “ver para crer”.

Começou por mostrar um troço de rio ocupado em S. Fins do Torno e depois desceu e parou junto de uma ponte, em Cernadelo, para ver mais uma zona totalmente vedada. “Como vês aqui, este novo “dono” já tomou posse, vedou e está a usufruir por completo do seu pedaço”.

A seguir levou-me à ponte da Amieira, entre Macieira e Vilar, onde vi o melhor com que podia sonhar: Uma quinta com terreno dos dois lados do rio, rodeada com muros e grandes portões de ferro, onde nem sequer os cães entram para mijar, muito menos o povo. Há um muro sobre o rio com gradeamento de proteção, uma área com total exclusividade, sem a intromissão dessa praga de “intrometidos” ditos pescadores, que só querem ir às uvas e aos melões. “E o que é aquilo ali, mesmo em cima do muro do rio”? – Ah, aquela construção junto ao rio? É uma vacaria para muito gado”, disse ele. E fiquei a ver uma enorme barreira de betão (talvez para os peixes praticarem o salto em altura), construída ao longo do rio sem qualquer afastamento deste e numa zona que, em termos de PDM, é “reserva ecológica” e o mesmo é dizer que é “proibido qualquer tipo de construção”. Como foi possível construir uma coisa assim e logo em cima do rio?

E continuou rio abaixo até parar em Pias, junto dos moinhos. Lá estava mais uma parcela de rio fechada de um dos lados, com acesso exclusivo ao dono do terreno. “Chega, não quero ver mais”, disse eu. “se calhar, daqui até à Foz, há bocados de rio que já desapareceram, vendidos aos bocados a turistas como recordação ou despachados lá para fora nesta febre de exportações” …

“Estás a ver como é possível ter um bocado do rio?” – “Desculpa-me mas, eles compraram-no” perguntei eu? “E que te interessa isso? Não vedaram o terreno e o acesso ao rio? Não são eles que estão na sua posse? Alguém entra lá? Que importa a escritura? Queres ou não queres um pedaço só para ti? Mas também te posso mostrar um outro que até foi coberto. Neste país, tudo é possível …”

Pensando bem, até aceito que o dono daquela quinta tenha vedado tudo e considere o rio seu porque, quando o rio passou … a terra já lá estava. Ora, se ele é dono da terra, é natural que também seja dono do rio que se meteu lá, com “tudo incluído” (como nas férias). Para não ser assim, o rio devia ter “andado” à volta da propriedade!

Até me deste uma ideia. Devo tomar posse de um bocado de estrada que passa entre dois terrenos meus? Se calhar devo fechá-la, não?” perguntei eu.

“Estás a ver? Já vi que percebeste como tudo isto funciona!!!”

Ora, a verdade é que eu não percebi nada. Ou pior: com muita tristeza apercebi-me de mais algumas coisas que não abonam nada a favor do estado de direito onde pensamos e até dizemos que vivemos. E que é uma miragem. Dizemos estar num estado de direito, mas cada um faz o que quer e lhe apetece, com total impunidade, sem que quem tem a obrigação de defender o que a todos pertence, o faça. Perante a lei, dizem-nos que “somos todos iguais”. Mas a realidade é que “somos todos iguais, mas há alguns que são mais iguais do que os outros”. 

É caso para perguntar, como é possível vedar-se o acesso a um curso de água natural quando a lei diz o contrário? Como é possível fazer-se um estábulo em cima da margem de um rio, em zona onde é proibido construir o que quer que seja? Quem licencia ou “fecha os olhos”? Sei que todos dizem: “Não é da nossa responsabilidade”. Mas então quem é responsável e finge que não o é? Por amor de Deus, há muros que parecem muralhas! E ninguém os vê? Quem os licenciou? Se não têm licença, quem os embarga? E os muros em cima do rio. Ninguém os impede? E os direitos de livre circulação junto ao rio que são devidos a todos nós enquanto cidadãos deste país? Quem os e nos defende?

Aquela muralha de betão em cima do rio é uma grande construção, o que se diz ser uma “VACARIA”, provavelmente com um acordo: Os peixes podem “mamar” nas vacas à vontade, enquanto elas se estão, literalmente, “a cagar” para os peixes, direta e livremente no rio, tendo eles de aguentar a poluição e o mau cheiro, senão a morte. E é assim que morrem os rios, património indispensável à nossa vida e sobrevivência. O que se segue?

Não, apesar de ter boas recordações do Amial, não estou interessado em comprar aquele bocado de rio, porque é pertença de todos nós. E como o rio Sousa me diz muito, tenho o direito à indignação e o dever de clamar contra estas violações da lei, estes atropelos aos direitos de todos, deixando um alerta que importa ter em conta: Se as entidades e autoridades que têm a responsabilidade e obrigação de zelar pelo cumprimento da lei se demitem dos seus deveres (e não me importa porquê), apesar de sustentadas pelo nosso dinheiro, cabe-nos a nós mover uma ação popular a quem de direito para defender o que a todos pertence. Ou amanhã não teremos moral para nos queixarmos de que alguém se veio a apoderar indevidamente do ar que pertence a todos nós e que nos obrigue a pagar se quisermos respirar, o que até já nem parece ser uma “miragem” …