O gostar e ter algum jeito para as cadeiras de desenho e topografia serviu não só para me facilitar a tarefa de concluir o meu curso, como para ganhar alguma “massa” com os colegas mais endinheirados e de mesada mais “abonada”, melhorando a minha que, por sinal, era bem pequena. Foi essa a razão por que fiz os trabalhos práticos das duas cadeiras a mais de meia turma… Talvez por essa “prática” excessiva me ter proporcionado algum traquejo no desenho de construção civil e sem nunca ter percebido bem como é que isso transpirou para o conhecimento de alguns conterrâneos, acabei por ser solicitado por alguns deles para lhes fazer os projetos de construção que a Câmara Municipal passara a exigir no licenciamento das obras de construção, embora os processos fossem muitíssimo simples se comparados com tudo o que hoje se exige. Foi assim que dei comigo a desenhar casas em papel vegetal, a lápis e com régua e esquadro, depois passadas a tinta nanquim com um estojo de desenho manual, a troco de nada, pois fiz questão de fazer disso um serviço à comunidade rural em que estava inserido.
Desse tempo tenho gratas recordações de muito boa gente sobretudo pela sua simplicidade e humildade. A maioria não tinha meios para construir a casa, sendo que às vezes um ou outro conseguia amealhar algum para fazer o rés do chão onde se abrigavam e o resto logo se veria. Muitos iam levantando a casa no sistema de autoconstrução, quase sempre ao fim de semana com a ajuda de familiares e amigos, alguns deles em troca de favores: “Hoje ajudo-te a ti e amanhã serás tu a ajudar-me a mim”. E, nesse sistema, só era preciso ter dinheiro para os materiais porque a mão de obra era “da casa”. O contributo que dei a uns quantos foi o projeto para “meter na Câmara”.
Mas a memória e respeito que tenho dessa gente que se sacrificou imenso para ter uma casa, por mais humilde que fosse, perdura intacta e viva, embora muitos dos seus descendentes, que deviam ser os primeiros a sentir orgulho neles, ignoram, desvalorizam, quando não menosprezam o resultado do seu sacrifício.
Uma das recordações mais interessantes que guardei como uma lição de vida diz respeito a um homem de Caíde que um dia, sem eu saber como, apareceu em casa dos meus pais à minha procura. De aspeto muito humilde, pediu-me “se lhe podia fazer o projeto de uma casa de habitação”. E, ao contrário do habitual, ele sabia o que queria e até já adiantara serviço: “Quero uma casa de dez metros por oito e já tenho contrato com um pedreiro lá da terra para a fazer por oito contos” – nessa altura o pedreiro era o construtor civil e bastava dizer-lhe quais as dimensões pretendidas para a casa e nada mais. Não havia caderno de encargos nem escolha de materiais pois eram sempre os mesmos: Paredes em granito, pavimento do rés do chão em terra, para loja, andar com soalho de pinho sobre armação de eucalipto, divisórias em tabique e cobertura em telha Marselha sobre armação de eucalipto. Não havia casa de banho. Como aquele valor nessa época já não era para qualquer um, perguntei-lhe: “E você tem os oito contos para fazer a casa”? Ele respondeu logo: “Não, só tenho três contos, mas tenho uma vizinha que me empresta os outros cinco”. Fiz o desenho de graça como era habitual e entreguei-lho uma semana depois. Só o voltei a ver passados três ou quatro anos quando me apareceu novamente à porta. E, para minha surpresa, voltou a pedir-me para lhe fazer outro projeto de uma habitação. Dessa vez teria duas diferenças: o tamanho e o preço acordado com o pedreiro. “Quero que me faça o projeto de uma casa com doze metros por dez pois já a contratei com o pedreiro por doze contos”. Na minha cabeça os doze contos eram uma pequena fortuna e estranhei que aquela pessoa, aparentemente humilde, que já investira oito contos há três ou quatro anos numa casa, pudesse aventurar-se a construir outra e logo com um orçamento mais alto. E repeti a pergunta que lhe fizera quando ele me apareceu pela primeiro vez: “E o senhor tem os doze contos?” “Quem me dera. Não, não tenho. Só tenho quatro contos, mas a minha vizinha vai-me emprestar oito”, respondeu ele com um breve sorriso.
Fiquei intrigado e não resisti: “A sua vizinha deve ser muito rica para lhe emprestar a maior parte do dinheiro que precisa para fazer as suas casas!!!…” Mas ele, sorrindo novamente, concluiu: “Não, não é. Tem algum e anda a ver se consegue juntar o suficiente para construir uma casa, porque só avança para a construção quando tiver o dinheiro todo. Assim, enquanto isso não acontecer, eu vou trabalhando e fazendo as minhas casas com o dinheiro dela”. Mas eu ainda não estava satisfeito e quis saber como é que ele ia amealhando dinheiro para pagar os juros e ainda amortizar a dívida à vizinha até à sua liquidação. Ele encostou-se à parede e falou num tom solene: “Quando juntei um bocadinho de dinheiro, decidi construir a minha casa de habitação. Como sabe, não tinha o suficiente, mas a minha vizinha emprestou-me cinco contos e eu comprometi-me comigo mesmo de que tinha de fazer tudo o que fosse preciso para cumprir com ela. Por isso, envolvi a família nesse objetivo e cortamos com todos os consumos desnecessários, poupando em tudo o que era possível. Nunca falhei com um único pagamento e saldei a dívida ainda antes do prazo previsto. Percebi que, quando temos dinheiro disponível, tendemos a gastar mais do que o necessário, a comprar o que não precisamos e até a desperdiçar. E, enquanto ela espera juntar dinheiro suficiente para pagar a casa, eu construí a minha e vou fazer outra, usando as suas economias. Parece absurdo, mas é a realidade. Só implica sacrifício e responsabilidade. Porém, é coisa que nem toda a gente está disposta a fazer” …