Só sabemos o que vivemos …

Hoje não me arrisco sequer a pensar qual é o grau de sofrimento e dor de uma mulher ao ter um parto, se é que se pode graduar de alguma forma esta ou aquela dor. E não me arrisco, porque não a vivi (nem irei viver nunca). Já sobre a dor renal posso pronunciar-me porque a experienciei por mais que uma vez, mas a verdade é que nem assim posso, nem quero, fazer comparações com a dor de outros doentes renais. É por isso que se diz, e é bem verdade, que em muitas coisas na vida “só sabemos o que vivemos”. A primeira vez que ouvi esta frase “já lá vai um par de anos”, não compreendi o que o seu autor verdadeiramente pretendia dizer com ela, mas o tempo ajudou-me a chegar lá.                                                                                                             Uma das primeiras lições recebi-a quando cumpri o serviço militar e mais propriamente na comissão de serviço em Moçambique. Tendo-se reunido em Évora o batalhão em que me integrei, foi ali que fui conhecendo os companheiros, em especial os da minha companhia, com quem passaria a lidar mais de perto e, tanto em Évora como ao longo de barco da viagem de cerca de trinta dias no barco Niassa e já em Moçambique nos primeiros tempos, fui ficando com uma ideia da possível reação de muitos daqueles homens quando se encontrassem pela primeira vez debaixo de fogo. E, das conversas havidas e alguns comportamentos, fui formando uma ideia peregrina daqueles que se iriam comportar com valentia e determinação e dos que rapidamente se esconderiam até a tempestade passar. Mas na verdade, só quando “vivemos” um ataque dos terroristas ao aquartelamento e ficamos debaixo de fogo ao som de uma sinfonia infernal dos estoiros das bombas dos morteiros e do silvo das balas, é que soubemos ao certo o que é a guerra e a forma como reagimos, pois alguns que se diziam valentes “baixaram a bolinha” e outros pelos quais não se dava nada, vieram para fora das casernas como se o tiroteio fosse ”música para os seus ouvidos”.                                                                                            Quase sempre imaginamos o que não conhecemos, aquilo que nunca vivenciamos, com base no que ouvimos dizer, no que lemos ou ainda no que vemos em filmes ou documentários. Mas a verdade é que não estávamos lá, não sentimos a dor ou alegria, o cansaço ou o repouso, a vitória ou a derrota, a força mental ou o esgotamento psíquico, o grau de dificuldade ou as facilidades. E isso faz toda a diferença para que, aquilo que imaginamos que é algo, pode estar muito longe da realidade.                                                                                                        Sempre que ouvia falar de alguém que “tomava conta” de um familiar, fosse pai, mãe, conjugue ou filho em situação de doença prolongada ou deficiência e até quando contactava diretamente com a pessoa que estava nessa condição, lamentava o sucedido, “dizia duas a abater”, mas mal me virava para o lado já a “dor” me ficava para trás, embora a verdadeira dor e sofrimento continuassem lá com a pessoa que cuidava, o chamado “cuidador informal”. Porque esses, sim, “sabem” verdadeiramente o que isso significa e muito especialmente quando se veem esquecidos pelos amigos, quando não por familiares mais ou menos próximos que descartaram o problema para cima do “bode expiatório”. E só quando a Luísa teve o AVC e ficou numa situação de dependência, aí passei a “viver” a situação de cuidador ao longo de dias, semanas, meses e anos e fiquei a “saber” o que realmente é isso, se bem que tenho de dar graças a Deus por me ter dado condição que me permitiu ter “ajudas” para aliviar, e muito, as dificuldades, o que não acontece à maioria dos cuidadores. Só ao “viver” a personagem de cuidador e de “vestir a sua pele”, passei a “sentir e saber” o que isso significa.                                                                                                        Ao longo dos 15 anos de doença da Luísa fui-me mentalizando que a era incurável, não tinha reversão e, pelo contrário, iria-se agravando com o tempo. E, achava eu, que estava preparado e mentalizado para enfrentar a sua morte com tranquilidade quando esse dia chegasse. O último ano foi particularmente difícil com várias infeções que a foram debilitando ainda mais, até que uma mistura explosiva de covid com uma bactéria resistente lhe deu o golpe final. Mas depressa percebi que a tal mentalização que eu achava que vinha fazendo para fazer a aceitação da sua partida a qualquer momento não serviu para nada. E cheguei à velha conclusão de que, afinal, nunca estamos preparados para um momento destes, o que veio confirmar a máxima de que “só sabemos o que vivemos” …