Para já, não me esqueci do artigo …

Como estava bastante frio, cobri a cabeça com um boné que os meus filhos me ofereceram para fazer as vezes do cabelo que o tempo foi deixando espalhado pelos dias desta vida e fui visitar a minha mãe. Quando regressei, ainda não tinha chegado a casa e já a minha irmã me estava a telefonar para dizer que me esquecera do boné. Não me incomodei o suficiente para voltar para trás e segui para casa pois os esquecimentos já se vão tornando vulgares. Dei comigo a pensar que outrora era eu um dos que contava histórias e anedotas sobre os esquecimentos de outras pessoas mais velhas e do caricato de muitas situações que criavam, como já o fiz aqui na crónica semanal e agora já sou tema para esta conversa com os leitores. Mas, sempre que me acontece um “lapso de memória” como o esquecimento do boné, não faço nenhum drama e encaro a situação com humor. Que ganhava eu se me chateasse? Como se costuma dizer, só tinha dois trabalhos: chatear-me e “deschatear-me”.

Mais ainda, quando converso com as pessoas da minha geração não encontro uma única que não me diga sofrer do mesmo mal. Por isso, concluímos que é a “fruta da época e temos de aceitá-la. Claro que há sempre alguém que nos vende logo uma receita milagrosa para estas “falhas de memória”: “O que tu precisas é de tomar umas vitaminas”, como se as vitaminas sejam o remédio milagroso para tudo. Também me têm aconselhado a fazer exercícios para a memória tal como passatempos do tipo palavras cruzadas, sudoku e outros. Mas se eu já faço isso há muitos anos, o que devo mudar agora? Aumentar o tempo que dedico a tal prática ou mudar para o jogo do xadrez?                                                        Nalgumas ocasiões, ao pousar o telemóvel ou a chave do carro, já dou comigo a pensar: “Deixa-me tomar bem nota onde ficas para não me esquecer”. E na verdade, quando faço este exercício mental para não cometer esse erro, a coisa resulta quase sempre: E eu esqueço-me …

É vulgar irmos a um supermercado de propósito para comprar um produto que precisamos e quando chegamos a casa damos conta que compramos diversos artigos, mas não trouxemos aquele que nos levou a ir lá. A partir de certa altura esquecemos onde deixamos os óculos, as chaves, o telemóvel, a carteira e muitos outros objetos de uso diário. Quando tal acontece, dedicamo-nos à investigação …

Lembro-me de um episódio caricato que se passou quando ainda andava a estudar em Coimbra. Como quando ia para lá tinha de ficar por lá o trimestre completo pois não havia condição económica para vir a casa uma vez que fosse, um dia tiraram-me uma fotografia durante uma pequena viagem de estudo e fiz questão de a enviar aos meus pais para ver que estava bem. Escrevi uma carta bonita (nesse tempo ainda se escreviam cartas à mão) a dizer que juntava a fotografia da viagem, fechei o envelope, selei e meti no correio. Quando cheguei à escola dei com a fotografia em cima da mesa. Escrevi logo outra carta à pressa e voltei a proceder da mesma forma até entregar a carta nos correios. E vim a descobrir que a fotografia teimava em ficar de fora. Esquecera-me novamente. Só há terceira tentativa não a esqueci porque antes de escrever outra carta pequei num envelope e coloquei dentro a fotografia. Será que com os meus 18 anos de então já me estavam a morrer neurónios?   

Por isso, o pior de ficarmos velhos é que, quando começamos a achar que já sabemos quase tudo, começamos a esquecer. E não há volta a dar! Encontrei recentemente um amigo que já não via há bastante tempo e ele manifestou-me uma certa tristeza por estar a envelhecer, ficar esquecido e já não ter a energia que tinha. Para o animar disse-lhe: “Não te entristeças por envelhecer, pois é um privilégio negado a muitos. Quanto ao facto de teres cada vez mais esquecimentos, seja do nome das pessoas, dos aniversários de familiares e amigos e até de encontros, podes estar descansado que eles encarregar-se-ão de te fazer o mesmo. E as contas ficam acertadas”. 

Os pequenos esquecimentos são comuns a partir dos sessenta anos de idade e ocorrem com mais ou menos frequência em função da morte de neurónios, o que é tido como o normal no processo de envelhecimento e é em regra comum a toda a gente. Claro que nós podemos recorrer ao “memofante” e outros produtos semelhantes, que não são mais do que suplementos alimentares naturais indicados para o cansaço e o desempenho mental, mas que se saiba, não dão vida aos neurónios mortos (ao contrário, o Viagra dá vida a outros “mortos”, se bem que só por alguns instantes). E o certo é que esses esquecimentos têm tendência a ir aumentando com a idade e à medida que os neurónios vão morrendo. No entanto, como cada um de nós tem mais de 80 mil milhões de neurónios, se nos morrer um ou dois por dia, ainda temos neurónios para dar, vender e levar para a cova ainda uma enorme quantidade …

Há dias fui acordado às sete e meia da manhã pelo toque do meu telemóvel. Era um amigo a perguntar-me a que horas era o almoço do grupo de que ambos fazemos parte. Ainda meio a dormitar, consegui lembrar-me e dizer-lhe que era no dia 8, mas só do mês seguinte e não naquele. Esse episódio teve o condão de me fazer crer que ao Magalhães (esse meu amigo), já devem ter morrido mais neurónios do que a mim ou, pelo menos, lhe devem estar a fazer mais falta.

Esquecimentos todos temos, sobretudo a partir de uma certa idade e há que encará-lo com naturalidade, tranquilidade e algum humor sem fazer disso um filme, embora possam ser sinais de algo mais preocupante do que um simples esquecimento. Mas, para bem da nossa saúde, até essa possibilidade devemos votar ao esquecimento e não nos preocuparmos. Até quando tiver de ser …