Como tudo mudou na Festa Grande …

Ao pensar que está aí à porta a Festa Grande de Lousada, vem-me à memória lembranças de outras Festas passadas, tanto na infância como na adolescência, com maiores recordações destas. E não deixa de ser interessante olhar a forma como quase tudo mudou, evoluiu ou desapareceu para dar lugar a novos desenvolvimentos, atores e ações. E para quem como eu viveu a Festa Grande há mais de setenta anos, é fácil perceber as muitas alterações ao longo do tempo. A Festa Grande tornou-se cada vez “mais Grande” no número de dias em que decorre, no número de ruas, avenidas e praças que ocupa na Vila, na quantidade de eventos para atrair os “crentes” de outras “religiões” como é o caso do entretenimento”. Mas a vida é feita de mudança …

Mudou o equilíbrio entre festa religiosa e profana, tendo a segunda vindo a ganhar cada vez mais protagonismo, com programações que se vão alargando de ano para ano, integrando alguns dos cantores e grupos musicais mais credenciados da nossa praça, anunciados como isco para atrair mais e mais espectadores – que não romeiros – numa competição renhida entre sedes de concelho ou mesmo de freguesias vizinhas, que põe a “clientela” a classificar as organizações em função das suas preferências. Antigamente a banda de música era o centro das atenções musicais e mais se tornou quando passaram a ser duas, o que deu origem a duelos musicais muito apreciados com o público a assistir a um “combate cultural”. Hoje, a “clientela” da banda passou a ser reduzida, nada tendo a ver com a quantidade de espectadores que um qualquer cantor, pimba ou não, arrasta atrás de si, fazendo com que chegue a ver-se um autêntico “mar de gente” diante do palco, ou não seja “à borla” um concerto que, habitualmente, teria uma entrada a pagar …

Também os orçamentos da Festa foram subindo para dar satisfação à crescente necessidade de aumentar a “parada” no nível e quantidade de espetáculos, suportados em parte pela colaboração essencial das empresas, hoje em elevado número, além da contribuição municipal do erário público e individual da população concelhia. Outrora, esses orçamentos viviam muito da contribuição individual da população já que quase não existiam indústrias no concelho e as poucas que havia eram de muito pequena dimensão. Há quase seis décadas integrei a Comissão Organizadora da Festa em Honra do Senhor dos Aflitos, de um grupo alargado de trinta jovens, tendo a minha missão constado essencialmente em fazer o peditório na aldeia. Fiz-me acompanhar de mais dois conterrâneos e tive de dedicar vários dias à tarefa por dois motivos distintos: por um lado, nem sempre encontrava o dono da casa, até porque se trabalhava “de sol a sol”. E por outro, quando estava em casa, mandava-nos entrar, obrigava-nos a comer e beber um copo de vinho enquanto desfiava um rosário de queixas porque não lhe compunham o caminho, no lugar faltava a eletricidade ou outra coisa qualquer. Depois de parar numas quantas casas e ter de beber um copito de tinto aqui e outro ali e outro a seguir, um atrás do outro porque se não aceitássemos levavam a mal, a dada altura já não havia condições de “equilíbrio” para continuar a missão do dia. E era importante, porque esses contributos eram essenciais no orçamento. 

A “festa profana” também mudou o seu grande “animador”. Se antes era debaixo de toldes improvisados, mesas compridas de madeira e bancos corridos que o “vinho” era rei e senhor, servido em canecas de porcelana cheias diretamente da pipa com iscas de bacalhau para acompanhar, hoje esse “rei da animação” que, no dizer do chefe do regime “dava de comer a um milhão de portugueses” foi destronado, totalmente esquecido e ignorado, para dar lugar à “cerveja”, tornada “rainha” da festa, servida em copos de plástico ao som duma música trepidante que agita os corpos e ajuda a consumir mais, tendo como damas de companhia uma variedade de “shots”, que a gente jovem e menos jovem usa para “aquecer a máquina” numa noite de animação que se prevê longa e onde pode acontecer de tudo …

Nos “comes e bebes”, as iscas de bacalhau, os “rosquilhos e cavacas” sob toldes improvisados, foram substituídas por tendas modernas onde as farturas se tornaram rainhas, para além das barracas de cachorros, sandes e outros “combustíveis” para alimentar a noite.      

Desapareceram os vendedores da banha da cobra, os jogadores da vermelhinha e carteiristas, além dos propagandistas, esses grandes precursores das promoções e do “pague um e leve três”, que podiam ser quatro ou até cinco peças por um preço único. Eles devem ter sido os professores de marketing onde os supermercados, os centros comerciais e outras “catedrais do consumo” de hoje aprenderam a arte de nos levar a comprar muito “lixo” que não precisamos. Em seu lugar multiplicaram-se as tendas de artesanato africano e não só, não se sabendo bem quem fabricou, nem onde, nem como, mas com gente nativa vestida num rigor tradicional para credenciar os artigos e toda uma gama de inutilidades.

Deixamos de poder andar às voltas no “carrocel oito” e de jogar uma ou mais vezes à malha na “corrida ao galo”. Mas além de se manterem os “carrinhos de choque”, ganhamos alguns equipamentos radicais à medida dos mais jovens e à necessidade de aumentarem a adrenalina do momento, em cadeirinhas voadoras, montanha-russa de frenético sobe e desce e outras diversões.

A descarga da tensão sexual, outrora escondida, clandestina e negada por todos, mas praticada, fazia-se entre o milho dos campos ao redor da Festa em cama improvisada, fila de espera e a pronto pagamento. A procura era muita, a oferta muito pouca. Hoje, libertada do pudor e preconceitos de outrora, acontece entre quem se conhece ou também não, sem qualquer contrapartida monetária, no recanto mais à mão e até mesmo num vão de porta, quando não entre a multidão a dançar e após uma desinibição a que muitas vezes o álcool não é alheio.

Se antes o foguetório se limitava aos foguetes normais e às bombas, com todo o tipo de estoiros para culminar na girândola que fazia com que “a barraca abanasse”, agora só quando a época não é incendiária podemos apreciar o colorido e beleza do fogo de artifício. “Bicheiros” e incêndios “mataram” esse espetáculo que era a “vaca de fogo”, que deixou saudades em muitos aficionados. Até o “mel”, essa luta tardia na noite com sacos de plástico cheios de água, veio e foi-se embora para tristeza dos praticantes, mas com satisfação das organizações e autoridades.

Foram muitas as mudanças que fizeram da Festa Grande de Lousada um evento mais grandioso e extenso, fazendo desta Vila uma enorme sala de espetáculos, goste-se ou não, incomodado ou não enquanto morador na área festiva, lesado e respeitado ou não nos seus direitos.  Diria que praticamente mudou tudo, a começar por nós mesmos. E muito. A Festa tornou-se mais profana para corresponder aos apelos deste nosso tempo. Só o protagonista deste acontecimento concelhio, a razão de ser do evento não mudou. Permanece igual ao que sempre foi: O Senhor dos Aflitos, O Cristo pregado na cruz, cuja imagem única encontramos todo o ano na Sua Capela no cimo do monte e que só sai à rua no domingo da Festa, no momento alto que é a Procissão, para abençoar os crentes, atrair a curiosidade dos mirones e ser honrado pelos devotos. Ele é o Senhor dos Aflitos, o refúgio dessa multidão de caminhantes que se move todos os dias, com ou sem destino, e que muitas vezes ainda não sabe que o é … 

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