Vítor Cunha Rego dizia que “os italianos são imaginativos, os alemães determinados, os americanos pragmáticos, os suíços equilibrados, os ingleses cínicos, criativos e perfeccionistas”. E os portugueses? Somos desenrascados, conformados, resignados. Afinal um povo de brandos costumes. Berramos, gritamos, mas quando chega aquele momento da verdade, contentamo-nos com pouco e recuamos”. Rematava ele: “Na prática, a teoria é outra” …
Na verdade, somos um “povo de gajos porreiros”, conformados com “as migalhas que caem da mesa”, apesar de nos dizerem que o nosso lugar é “à mesa”. Aceitamos pacificamente fazer filas a meio da noite para ser um dos vinte primeiros com direito a receber senha e ter chances de vir a ser atendido na repartição pública, centro de saúde, hospital, loja do cidadão, enfim, num serviço público que o estado tem a obrigação de nos prestar. Mas “não presta”. Por negligência, incompetência ou a pensar no deficit, a verdade é que os governantes não são capazes de reformar o Estado e resolver a falta de capacidade de resposta dos serviços públicos. Por isso, se queremos mesmo ser atendidos, temos de madrugar ainda que passemos o tempo na fila a resmungar e a dizer mal de quem nos governa. Ou então, e não são muitos os cidadãos capazes de o fazer, quando não atendidos numa situação urgente e num qualquer serviço público, têm a coragem de exigir que o façam, caso contrário ameaçam chamar um desses canais de televisão que aparece na hora. A verdade é que resultou sempre nos casos que conheço. Mas não passamos disso. Na eleição seguinte estamos a votar nos mesmos e a dizer que “os outros são iguais e, mal por mal, é melhor que estes continuem pois, “como já encheram a mula pode ser que não queiram mamar mais”. E já nos habituamos às situações em que temos de mendigar “de chapéu na mão” um serviço, uma licença ou até uma simples certidão, feitos pedintes calados e humildes, por algo que nos é devido, para depois irmos para casa resmungar ou descarregar a revolta em quem não tem “culpas no cartório”.
Razão tinha (e continua a ter) Vítor Cunha Rego ao dizer que somos “desenrascados, conformados e resignados”. Até já perdemos a tal capacidade da indignação, esse sentimento de revolta provocado por uma circunstância injusta, indigna, ofensiva ou incorreta com que somos “brindados” enquanto povo e cada vez com mais frequência.
Já não nos indignamos ao saber que qualquer mulher grávida neste país na hora do parto corre o risco de “bater com o nariz na porta” do hospital onde deveria ver nascer o seu filho e tenha de fazer dezenas ou centenas de quilómetros até encontrar um hospital alternativo, com o risco de ter de “parir” numa ambulância, com um bombeiro a fazer de “médico obstetra”. Tem a vantagem de ser mais barato …
Já não nos indignamos ao ver as imagens dos principais aeroportos do país, especialmente no da capital, com milhares de passageiros de cabeça perdida pela perda do voo ou à espera da bagagem que não chega há semanas, porque os serviços aeroportuários não funcionam, semana após semana, numa manifesta incapacidade de resolver um problema crónico, que nos vai atingir quando formos passageiros e em que “a culpa morre solteira”. Será que se pode levar uma cama para o aeroporto? Porque a espera pode ser muito longa …
Já não nos indignamos por as juntas médicas estarem com mais de 2 anos de atraso, condicionando a vida de milhares de portugueses e sem uma solução que respeite tanta gente frágil e em necessidade. Sem o “papel” não há pensão e sem pensão … o mês é longo demais.
Já não nos indignamos com a arrogância de um ministro ao anunciar a construção do aeroporto de Lisboa, sem pareceres nem estudos e sem ouvir ninguém (a verdade talvez se saiba um dia) feito Tarzan, para ser desconsiderado e humilhado de forma vergonhosa no dia seguinte, ter de “meter o rabinho entre as pernas”, dar o dito por não dito numa “triste figura” e espetáculo indigno, só para manter o tacho e não ter um mínimo de dignidade para se demitir. Mas também não nos indignamos quando, sem qualquer sentido de ética nem respeito pelo povo português, vimos o primeiro-ministro, em vez de o “pôr no olho da rua” de imediato, conceder-lhe um perdão público como se aquilo fosse uma coutada partidária de um grupo de amigos, onde há um “poder sombra” a decidir “quem entra, quem fica e quem sai”. É caso para dizer, “perdoai-lhe Senhor que não sabem o que fazem” …
Já não nos indignamos ao saber que dois tribunais de duas cidades do grande Porto têm um único telemóvel para fazer chamadas oficiais. E, dizia-me um advogado que um dia destes teve de esperar que um táxi fosse buscar o telemóvel ao outro tribunal de outra cidade para se fazer uma chamada, porque é assim bem equipada que a justiça anda!
Já não nos indignamos, e até esquecemos, do chefe do governo usar como bandeira da descentralização o Infarmed e repetidamente dizer há 4 anos que vinha para o Porto. Mas o Porto só o vê por um canudo!
Já não nos indignamos por aumentarem mais e mais os portugueses sem médico de família – fala-se já em 1,3 milhões – apesar de há 4 ou 5 anos o mesmo primeiro-ministro ter prometido acabar com a sina. Não faltam só médicos de família, mas também neurologistas pois o esquecimento das promessas é uma maldição dos governantes!
Já não nos indignamos ao ouvir o mesmo afirmar no Parlamento que a Saúde está mal e precisa de ser reformada e ao mesmo tempo dar o voto de confiança na ministra que levou o Serviço Nacional de Saúde a uma “doença grave”, com doentes nos corredores há vários dias (se é que há corredores que cheguem para todos), serviços de urgência fechados, falta de pessoal, listas de espera e de desespero …
Se a pandemia de 2020 serviu (e continua a servir) de desculpa para todos os males, a guerra tornou-se agora noutro bode expiatório que os governantes usam e abusam como desculpa para tudo o que não corre bem, pela incapacidade de organizar um estado tão caótico, desorganizado e do desenrasca, servido por clientelas partidárias que tantas vezes não percebem patavina de governação, gestão ou do que quer que seja e que se estão marimbando para os interesses das pessoas, mas não do partido a que prestam vassalagem. É um estado propício para os que vivem de dar “um jeitinho”, “meter a cunha” ou “desbloquear um problema”, tantas vezes criado para a dificuldade ser uma fonte de receita para aqueles que, dentro e à volta do poder, vivem (bem) à conta do “mendigar” a que mais que muitos cidadãos são obrigados dia a dia para ver o seu grande ou pequeno problema resolvido na instituição ou repartição pública de âmbito local ou nacional. São os chamados “influenciadores” que borboleteiam e vivem à volta do poder …
Estamos a caminho de nos tornarmos o país mais pobre desta União Europeia, ultrapassados pelos países que saíram da órbita da Rússia e com uma dívida que no seu todo, entre estado, empresas e privados já está quase a chegar aos oitocentos mil milhões de euros e continua a subir dia a dia, apesar de nos irem dizendo de vez em quando que a nossa dívida diminuiu. Mas também não deve ser coisa que preocupe os nossos governantes pois já tivemos um primeiro-ministro a dizer que a dívida não é para pagar, mas para ser gerida, e temos um atual ministro que até “ameaçou” os alemães para se porem “finos”, caso contrário não recebiam o que lhe devemos. Por isso, se governantes de ontem e hoje não levam a dívida a sério, se vendem esta ideia aos estrangeiros que Portugal é um país excelente para se viver (mas com as reformas deles) e temos dos salários mais baixos da União Europeia, que razões pode o povo português ter para se indignar?