Há muitos anos atrás fui visitar uns tios que não via há algum tempo, absorvido no ritmo do trabalho e dos afazeres do dia a dia. O meu tio era muito formal comigo, mas gostava de falar e por isso tivemos de pôr a conversa em dia durante mais de uma hora, recostados em dois cadeirões na varanda da casa. Já a meio da tarde e com as novidades em dia, pediu à minha tia para arranjar um lanche, confidenciando-me em voz baixa, mas com orgulho: “vai provar uma pinga especial que eu cá tenho. É uma maravilha”.
Esperei para ver. Quando ela colocou os petiscos na mesa sobre uma toalha de linho branco, ataquei a broa e as rodelas de salpicão muito finas, mesmo a meu gosto. Depois de ter feito uma “boa cama” para a pinga prometida, ele segurou na cântara de barro, encheu-me o copo e disse com entusiasmo: “prove e diga-me lá se é ou não é bom”. Não sendo propriamente considerado provador, levei o copo à boca e bebi um trago, bochechando para apreciar melhor as características do vinho. Então, fui apanhado por um intenso choque gustativo: O raio do vinho era praticamente vinagre. Desprevenido, de repente vi-me num dilema diante do seu olhar expectante: entre o ter de dizer uma mentira piedosa e preservar-lhe o sorriso confiante naquele bom vinho ou contar-lhe a verdade nua e crua e matar-lhe a candura da ignorância. Claro que não tinha outra saída senão mentir-lhe. Era a chamada “mentira piedosa”, que não trazia nenhum mal ao mundo, mas que era muito importante para ele, até porque “a ignorância é feliz”.
Afinal, o que se tinha passado para alguém como ele beber um vinho avinagrado e considerá-lo excelente? A minha conclusão em função do que soube depois, é que se tratou de um fenómeno bem simples: os meus tios viviam sozinhos e só eram visitados ao fim de semana pelos filhos que residam fora. Ora, apesar disso, tinham aberto uma pipa de mais de quinhentos litros de vinho bom, mas era vinho a mais para duas pessoas com a sua idade consumirem em espaço de tempo razoável sem que se alterasse. Se o vinho era bom quando a pipa foi aberta – e admito que sim – com a entrada de ar na vasilha por força da saída do vinho criaram-se condições para o desenvolvimento das bactérias responsáveis pela acidificação, o que se veio a verificar, por aquele vinho ter sido consumido ao longo de muitos meses, tempo mais que suficiente para que a transformação do vinho em vinagre se tivesse verificado. Então como é que não se aperceberam que o vinho estava avinagrado? Por uma razão simples: começaram por beber um vinho bom ou até muito bom, durante algumas semanas. No entanto, com as condições de oxigenação ideais para se dar a acidificação, esta foi acontecendo muito lentamente e, também lentamente, foram-se adaptando ao novo paladar do vinho pois as alterações diárias eram mínimas e não lhes permitia aperceberem-se da diferença. Como não contrapunham com outra amostra, o seu gosto ia sendo “modelado” pelas mudanças lentas do vinho e mantiveram assim a classificação de “bom” para um vinho que de bom já nada tinha. É como quando temos um filho e não nos apercebemos de que ele cresce diariamente, porque as diferenças são sempre pequenas de um dia para o outro. Só quando vem alguém de fora que já não o vê há algum tempo, é que se apercebe do “salto” que ele deu e diz com grande espanto: “Como o rapaz cresceu desde a última vez que o vi”!!!
Lembrei-me deste acontecimento com o meu tio quando há pouco li uma breve história em que Olivier Clerc, através duma metáfora, põe em evidência as graves consequências de não termos consciência das mudanças que afetam a nossa saúde, as nossas relações, a evolução social e até o ambiente. E, como ela é uma pequena grande lição de vida que cada um de nós pode e deve guardar para si e dela tirar os proveitos mais convenientes, o caso do vinho só vem confirmar que podem ser efetuadas grandes mudanças em muitos aspetos da vida de cada um ou de todos nós se não nos apercebermos das pequenas alterações que forem sendo feitas ou se não lhe dermos importância. Porque muitas pequenas mudanças podem facilmente transformar-se numa mudança profunda. Mas vamos à história de Olivier Clerc:
“Imagine uma panela de água fria na qual nada tranquilamente uma pequena rã. É acesa uma chama debaixo da panela e a água começa a aquecer muito lentamente. E, como a água aquece devagar, a rã não se apercebe de nada. Pouco a pouco fica morna e a rã, acha-a muito agradável e continua a nadar. A temperatura continua a subir …
Às tantas, a água está mais quente do que a rã gosta. Sente-se algo cansada, mas não fica com medo. Até que a água fica bem quente e ela começa a achar desagradável. No entanto, já está muito debilitada e então suporta e nada faz. A temperatura continua a subir sem que a rã tenha forças para sair e acaba por ser cozida e morre. Se a mesma rã tivesse sido lançada diretamente na água a 50 graus, com um golpe de pernas teria saltado de imediato para fora da panela. Isto mostra que, quando alguma mudança acontece lentamente, escapa à nossa consciência e perceção e não desperta, em regra, qualquer reação, oposição ou tipo de revolta.
Se olharmos para o que tem acontecido na sociedade há décadas, veremos que temos sofrido uma mudança lenta no modo de viver e que nos estamos a habituar. Uma série de coisas que há 20, 30, 40 ou 50 anos nos teriam horrorizado, foram lentamente sendo tomadas como normais, deixando a maior parte das pessoas indiferentes. Em nome do progresso, da ciência, do lucro, vão sendo efetuados ataques contínuos às liberdades individuais, à natureza, à beleza e alegria de viver, lenta e repetidamente, com a cumplicidade das vítimas, desavisadas e, agora, já incapazes de se defender. As previsões para o futuro, em vez de suscitarem reações e medidas preventivas, preparam as pessoas para, psicologicamente, aceitar algumas condições decadentes e até dramáticas. Quando falei destas coisas a primeira vez, era para amanhã. Agora, é para hoje!!! Consciente ou cozido, precisa escolher! Então, se você não está como a rã já meio cozido, dê um saudável golpe de pernas antes que seja tarde demais” …
Ao recordar o orgulho que o meu tio tinha no seu “vinho”, que já não passava de vinagre em que fora transformado lentamente e entender a mensagem de Olivier Clerc, tomo mais consciência de que “estamos a ser cozidos em lume brando”, adormecidos e tornados coniventes das múltiplas transformações profundas que afetam a sociedade de que fazemos parte e o meio ambiente desta nossa casa comum, que podem pôr em causa o futuro das próximas gerações que são nossa responsabilidade. Conseguiremos reagir a tempo de manter o planeta habitável e evitar a descaracterização da sociedade efetuada muito sorrateiramente, em nome do radicalismo e de pretensas liberdades?