Vai um cigarro? Não, obrigado…

A imagem mais remota que eu tenho de alguém a fumar é a do senhor Moura, jornaleiro de profissão. Já lá vão “uns anitos” … Encostado à enxada, tirava a caixa de mortalhas do bolso e um pequeno saco com tabaco a granel. Pegava numa mortalha, dobrava-a ligeiramente para lhe pôr dois dedos de tabaco e enrolava-a com as mãos. Terminava levando à boca a aba da mortalha, que molhava com a língua para a colar à parte de dentro e rematar o cigarro. Para o acender, usava um fósforo da caixa que trazia no bolso das calças. E retomava o trabalho com o cigarro pendurado no canto da boca. Cedo me apercebi que os cigarros feitos na hora, como os do senhor Moura, eram comuns nos pobres. Os cigarros “Fortes” já eram mais caros. Muito parecidos com os que o senhor Moura fazia, já vinham prontos, amarrados com uma tira de papel. Mais caros ainda eram os “Provisórios” e o “Português Suave”.

Já agora, posso dizer que tive a sorte de “ter passado entre a chuva sem me ter molhado”. Ou seja, nunca peguei sequer num cigarro para fumar, apesar de ter sofrido uma grande pressão própria dos tempos de juventude em que a malta apertava connosco para fumar, usando expressões fortes para nos convencer como “se não fumares não és homem” ou “fumar é para homens de barba rija”. E ainda hoje não sei se o nunca ter fumado se deve ao facto de não ter havido fumadores em casa dos meus pais ou à imagem que me ficou de certas pessoas agarradas ao cigarro, como se disso dependesse a sua vida. Bem cedo me ficou um sentimento de desconforto ao ver pessoas conhecidas a fumar com sofreguidão, escravos desse fumo na queima de folhas de tabaco enroladas, a arder lentamente.

Em criança não conheci nenhuma mulher que fumasse, pois era vício (quase) exclusivo de homens. Não “ficava bem uma mulher de cigarro na boca”, nem se imaginava um pai a autorizar. Se já era difícil para um rapaz, muito pior era com as raparigas, senão mesmo impossível. Só os homens podiam ficar horas seguidas a engolir fumo …

Já adulto, dizia-me um amigo que eu nunca conheceria o prazer que o cigarro dava a um fumador. E eu contrapunha sempre com o mesmo slogan: “Não conheço, nem quero conhecer”. Ele insistia, enumerando algumas (supostas) vantagens dos “inaladores de fumo ambulantes” como lhes chamava. Dizia então que “os fumadores sabem que vão morrer, enquanto os outros andam enganados”; “não preciso que me façam radiografias aos pulmões, pois sei o resultado mesmo antes de as fazer”; “os fumadores divertem as crianças a fazer anéis de fumo e têm o cigarro por companhia quando meditam”; “fumar é uma boa razão para ter cancro, mas quem não fuma não tem razão nenhuma”; “o cigarro aceso na mão dá estilo, uma aparência sexy e faz-nos mais homens”. Ora, terá sido precisamente o cigarro que lhe antecipou os dias, confirmando então uma outra suposta vantagem: “Os fumadores vivem menos, mas só deitam fora os últimos anos, ou seja, os piores”.

Para um fumador, pior do que não fumar, é não ter tabaco no bolso. É ter a sensação que, quando lhe vier a necessidade, pode faltar-lhe o produto.  É como sentir-se despido no meio do nada. Por isso, tem de encontrar rapidamente um local onde possa abastecer-se, ainda que não seja para fumar logo. Só o facto de sentir o tabaco no bolso já lhe dá tranquilidade. 

Nos anos 80 a Tabaqueira fez uma longa greve, que provocou falta de tabaco no mercado nacional. A partir de certa altura, era muito difícil encontrar cigarros à venda. Para quem se dispusesse a observar um qualquer centro urbano, rapidamente identificava o “corrupio” de pessoas a caminhar apressadas e cabeça baixa, de um café para outro, entrando e saindo sem se demorar, à procura de cigarros. Já nem se davam ao cuidado de pedir a marca que fumavam, pois a resposta era sempre a mesma. De tal forma era um drama que um dia o Lourenço, motorista de camião, num desabafo sentido, disse-me: “Sabe, nem imagina quanto sofro com a falta de tabaco. Nem é só pelos cigarros. Como ando por lá, sempre que vejo um café paro para ver se arranjo tabaco. Mas como fica mal entrar e pedir logo um maço, tomo uma bica e só depois pergunto se têm tabaco, para ouvir quase sempre: “Não temos”. E o que mais me custa é que tenho de tomar café atrás de café e … não gosto de café”. Nesse período, já um colega e amigo me confessava viver em pânico, com medo de ficar sem cigarros. “Só a possibilidade de não conseguir abastecer-me para o dia seguinte gera-me uma ansiedade terrível” … 

Não sendo objetivo desta crónica fazer qualquer campanha para que os fumadores deixem de consumir tabaco pelo respeito que tenho pelo livre arbítrio e o direito de cada um poder fazer as suas escolhas, boas ou más, não posso deixar de dizer que, não sendo fumador, fui muitas vezes incomodado no “meu canto” por aquela pequena coluna de fumo irritante que vinha dum cigarro qualquer, direitinha ao meu nariz, como de propósito, nalguns casos a vários metros de distância. No estádio, três filas à frente sentava-se um homem que fumava com muita frequência durante o jogo. E não é que aquele fiozinho de fumo saído do seu cigarro acertava sempre com o meu nariz!!! E não posso deixar de lembrar o ocorrido com o Vasco Lemos. Depois de fazer um exame aos pulmões, o médico ao olhar os resultados disse-lhe: “Você deve ser um grande fumador”!!! E ele, surpreendido, respondeu-lhe: “Senhor doutor, nunca na minha vida fumei qualquer cigarro”. Então o médico retorquiu: “Nesse caso, passa muito tempo junto de alguém que fuma, pois os seus pulmões parecem de um fumador crónico”. Aí, o médico acertou. A mulher dele fumava muito e até na mesinha de cabeceira tinha um maço de cigarros para fumar durante a noite, na cama … 

Os fumadores são uma legião com cerca de dois milhões de pessoas em Portugal, um campo que os governantes sempre exploraram com impostos obscenos sobre o tabaco, alegadamente para aliviar o custo que eles são para o Serviço Nacional de Saúde, já para não falar na poluição que provocam através das beatas e isqueiros descartados, além do fumo que se entranha nos espaços e roupas, mesmo dos não fumadores. Com tão grande “população votante”, não sei como ainda ninguém se lembrou de formar o PTA (Partido do Tabaco e Afins), capaz de vir a eleger um grupo parlamentar semelhante ao PAN para, em tempo de geringonças, exigirem redução de impostos, liberdade de fumar e incomodar os outros sem serem confinados. 

Recordo quando, em época de dificuldades, se ouvia com frequência um convite expresso na pergunta “vai um cigarro?”, efetuado por um qualquer fumador. Fui convidado muitas vezes e, apesar de “não ser fumador”, não deixava de responder com o agradecimento que esse gesto, de partilha e solidariedade, merecia: “Não, obrigado”.     

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