Já foi há muito tempo. Tinha eu oito ou nove anos e fui com a família à Missa do Galo, onde já se podia “beijar o Menino Jesus” que, nesse tempo, era a Personagem central do Presépio e do Natal (mais tarde viria a ser substituído pelo homem das barbas brancas com fatiota vermelha a que chamam pai natal, pela árvore de natal e um montão de produtos comerciais impingidos pelas indústrias que capturaram a Festa). No órgão, estava um padre relativamente novo que eu nunca tinha visto, que foi tocando ao longo de quase toda a celebração ora a acompanhar o coro local, ora a solo como música de fundo.
No fim da Missa e quando o celebrante iniciou a cerimónia para “dar o Menino Jesus a beijar”, daquele velho órgão saiu uma música sublime, tocada com delicadeza e elevação num controle perfeito na altura e duração do som, que me deixou maravilhado. Nunca ouvira aquele hino nem vira alguém tocar tão bem. Dei comigo concentrado naquela música que o organista conseguia tirar do velho órgão da igreja. Emocionado pela beleza dos acordes, senti os olhos húmidos. E continua a ser uma bênção e um privilégio ouvi-la, especialmente nesta época do ano. Por alguma razão a Unesco não ficou indiferente e considerou-a em 2011, e bem, Património Cultural Imaterial da Humanidade.
O nome original dessa linda canção de Natal é “Stille Nacht” e já foi traduzida e cantada em numerosos idiomas. Na versão portuguesa é conhecida por “Noite Feliz”, se bem que na tradução do original devia ser “Noite Silenciosa”.
Vale a pena saber quem foram os seus autores e a história da pressa na sua criação para resolver um problema. Ainda bem que aconteceu:
Oberndorf é uma pequena aldeia austríaca à beira do rio Salzbach, na região de Salzburgo. Naquela véspera de Natal do ano 1818, o padre Joseph Mohr estava desesperado porque o órgão da igreja avariara, ao que parece com os foles roídos pelos ratos. Sem o órgão, o habitual concerto de Natal seria um fiasco. E logo no primeiro Natal naquela paróquia! No limite, pediu orientação a Deus. Então lembrou-se que, dois anos antes escreveu um poema simples, também na véspera de Natal, após uma caminhada pelos bosques nas montanhas da região. Encontrou o manuscrito do poema numa gaveta da sacristia e correu para casa de um professor e músico humilde chamado Franz Xaver Gruber a quem perguntou se podia musicar a sua letra para que toda a gente a pudesse cantar na Missa do Galo desse dia. Depois de ler o poema, Gruber disse que sim pois a letra era simples e permitia uma melodia fácil. Mas teria de ser tocada só com viola porque não havia tempo para fazer algo mais elaborado. Ele respondeu que não era um problema. Pelo contrário, até vinha a calhar já que o órgão estava avariado.
O padre Mohr agradeceu e voltou à igreja para organizar os detalhes da Missa do Galo, enquanto Gruber se entregou à tarefa de fazer em tão poucas horas a música para o seu amigo. O músico chegou cedo à igreja com a viola e reuniu o pessoal do coro para lhes ensinar o hino improvisado, já que a hora da Missa se aproximava. E naquela noite de Natal de 1818, os participantes nessa Missa do Galo da igreja de S. Nicolau de Oberndorf, em Salzburgo, cantaram maravilhados o hino singelo e tocante escrito por Mohr e musicado por Gruber, que viria a tornar-se na canção natalícia mais conhecida no mundo.
E como se espalhou? Semanas depois, o técnico que foi consertar o órgão ouviu a história e pediu para tocar essa música. Impressionado com a riqueza melódica da composição, decidiu divulgá-la por todas as igrejas por onde passava, até que o caso chegou aos ouvidos do rei, Friedrich Wilhelm IV da Prússia, em 1838 e difundida de forma ativa. Depois, o Cristianismo levaria a música para todo o mundo através dos missionários, tornando-a global.
O que começou como um momento de pânico e promessa dum fiasco, terminou com um eterno presente de Natal para toda a humanidade em forma de música.
A canção a que o padre austríaco Joseph Mohr deu letra, inspirada no humilde Natal de Jesus em Belém e o seu amigo professor e organista Franz Xaver Gruber a linda música, emergida das marcas das guerras napoleónicas e em tempo de pobreza, incêndios, inundações, falta de segurança e fome, tornou-se popular e um dos temas musicais mais conhecidos. A tal ponto, que conseguiu parar por uma noite a Grande Guerra. O poema foi criado em tempos muito difíceis para Salzburgo. Daí as palavras deste cântico expressarem uma ânsia de redenção e paz. A letra original do padre Joseph Mohr, em alemão, fala de Jesus que, “como irmão, abraça carinhosamente os povos do mundo”. E, passados 200 anos, a classe de Franz Gruber tem o tamanho de uma civilização.
A divulgação da canção pelo mundo em muitos idiomas resultou em traduções nem sempre fieis ao texto original, como é o caso da versão portuguesa. No entanto, geralmente mantiveram o sentido principal da canção: O Natal como festa da redenção e sinal de paz. Mas, nem sempre isso foi respeitado, como aconteceu com a versão nazi deste cântico. O regime nazi tinha um problema óbvio com o Natal: Jesus era judeu. Por isso, a sua equipa tentou remover todo o contexto religioso da celebração sem conter referências a Deus, Cristo ou fé e torná-la um louvor a Hitler.
Na versão do americano Bing Crosby, que aparece na terceira posição entre os singles mais vendidos em todo o mundo com cerca de 30 milhões de cópias comercializadas em todo o mundo ou na naquela versão simples que ouvi pela primeira vez na minha infância, “Noite Feliz” é um cântico celestial que nos toca os sentidos, conforta a alma e faz “regressar a casa” na noite de Natal …