Vizinhos e o perigo de ficar em casa

Quando comprei o terreno para construir a casa onde moro, estava convencido que seria o único proprietário e residente deste pedaço de terra, que já cá estava quando nasci e por cá vai ficar quando eu “for de vela”. Ideia estúpida de quem não sabia o que dizia. Depressa viria a descobrir que, antes de aqui me instalar, já ele era ocupado por um grande grupo de residentes, na sequência do que já haviam feito os seus antepassados ao longo de muitos anos, talvez séculos, sem registo predial, escritura pública ou qualquer documento legal à luz da lei dos homens. Os primeiros que vi foram os pássaros, embora pensasse que estavam de passagem, e a seguir as cobras, que julguei desalojar facilmente ao saibrar o solo, construir casa e anexos, além de semear o relvado. Novo engano porque, nem uns nem outros me atribuíram grande importância, tendo a passarada, especialmente os melros e pardais, continuado a mostrar-se usufrutuários do espaço à descarada, a fazer ninhos e vir esgravatar no terreno à procura das minhocas e insetos, o que para mim foi um bónus tal o meu gosto por tais “clientes”.  Já as cobras, mantiveram-se escondidas como é seu hábito, mostrando-se somente de longe a longe, em duas ocasiões com a ninhada atrás. 

Quando o relvado cresceu e se transformou num lindo tapete verde, vim a descobrir que havia outros moradores de que não me tinha apercebido.  Um dia, de manhã, encontrei vários montículos de terra a manchar o tal “tapete”, sinal de que eu também tinha a companhia das toupeiras. Na gíria popular, são “de levantar”, porque atiram a terra escavada para a superfície. Ora bem: na minha estupidez, declarei-lhes guerra. Comecei por fazer “esperas” logo ao nascer do sol, à hora em que elas “entram de serviço”, escavando as galerias. E bem cedo lá estava eu, de enxada em punho, de olhos fixos nos montículos esperando ver a terra a mexer, sinal de que estava ali a empurrar a terra. Depois, levantava a enxada e cravava-a no monte, arrancando-o para o relvado e, com ele, a toupeira. Mas como não sou profissional, só resultou uma vez. Então, passei às armadilhas, mas o resultado foi pior. E finalmente, usei cianeto em pastilhas, sem sequer apanhar uma. Como não ganhei a guerra, elas ficaram por cá, na terra onde devem ter mais direitos naturais de propriedade e de residência do que eu e que, por isso, decidi abster-me de contestar e combater. 

E como não quero “recorrer à justiça” para revindicar os direitos que julgava só meus, chegamos a um acordo de convivência saudável, tendo elas se comprometido a viver “debaixo do solo”, enquanto eu e a família nos movimentamos “acima do solo”, sem que tenhamos de nos cruzar no dia a dia. Presumo que as famílias desses simpáticos “condóminos” se vão sucedendo por cá, geração atrás de geração, construindo a “residência” com várias “divisões” ligadas entre si por uma rede de galerias, “caminhos” do seu mundo por onde apanham as minhocas com que se alimentam. Pensando bem, tenho obrigação de respeitar ainda mais estes meus vizinhos porque, além de serem praticamente invisuais, passam a vida enfiados em túneis escavados “à pata”, sem qualquer iluminação, nem sequer um pequeno holofote na testa para “ver luz ao fundo do túnel”. Além disso, ainda têm de se cuidar pois a sua pele é muito cobiçada para fabrico de casacos para reis, aliás, rainhas. As minhas condóminas já não têm esse problema comigo e devem saber que deixei de as caçar e não as quero esfolar.

E contei esta pequena história deste “condomínio” onde vivo, porque cheguei à triste conclusão que a decisão do governo nos manter em casa “confinados” não foi bem pensada, pois não só não resolve esse problema do maldito vírus que veio da China (e ainda ninguém disse se ele fala chinês ou a língua de Camões), como nos arranja um monte de problemas, pelo facto de estarmos demasiado tempo em casa, ao contrário do que é habitual. Já bastava o agravamento dos conflitos pessoais e as discussões sem fim, em que os homens ficam sempre a perder. Ao ficar por casa, as pessoas têm tendência a “meter-se em trabalhos”, fazendo as coisas que foram adiando à espera de terem tempo (desculpando-se com a falta dele), e que agora, sem alibi, têm mesmo de fazer. Ora, ao quererem resolver os biscates pendentes lá por casa, num excesso de voluntarismo e sem cuidar da forma, acaba por dar asneira, conforme provam as estatísticas. Nestes dias em que a gente teve de ficar enfiada em casa, esta virou um lugar perigoso para viver. De tal forma, que os acidentes domésticos aumentaram e muito. 

E eu posso atestá-lo. Nunca na minha vida tinha caído de uma escada, mas foi desta que experimentei. No primeiro fim de semana de condicionamento resolvi aproveitar o bom tempo para fazer uma intervenção profunda numa sebe que me trava o vento há décadas. Vai daí, toca a cortar de um lado, do outro e por cima. Quando andava lá no alto, confiante que a escada se portaria bem, ao querer cortar um ramo um pouco mais distante tive de me inclinar e pressionei mais o lado direito da escada. Esqueci-me que tenho cá a tal família de toupeiras a viver no subsolo. Ora, ao colocar a escada no relvado junto à sebe deixei o apoio direito precisamente sobre “o telhado” de uma das suas galerias, por negligência, colocando em perigo a família desses meus simpáticos vizinhos. Quando o meu peso exerceu mais pressão sobre o apoio direito, este enterrou-se na galeria e, de repente, a escada tombou para o lado. Sem capacidade de reação, deixei-me ir. Do alto da escada à relva húmida foi um instante, tendo consciência de já não ter a força muscular de outrora para reagir em tempo. Meio atordoado, senti uma dor na perna esquerda, enquanto o meu filho corria para me ajudar a levantar. A canela da perna deve ter roçado pela escada abaixo pois estava esfolada e bem pisada, pelo que achei conveniente ir ao hospital. Sem nada partido, trataram-me da ferida e colocaram-me uma ligadura de proteção. Soube então que nesse dia aquele serviço tinha atendido muito mais sinistrados do que é habitual, vítimas de acidentes domésticos com consequências mais ou menos gravosas, resultado destas “estadias prolongadas em casa”.

Afinal, ao contrário do que diz a DGS, ficar em casa “não é nada bom para a saúde”. Eu diria, “nada recomendável”. E a minha perna, que três semanas depois continua a ser objeto de tratamento, é a prova provada que estão errados.

Ou serei eu que não estou a ver bem as coisas? 

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