Quando a vindima era comunitária

Era na Festa de Sto. Ovídio, em Aveleda, a 8 de Agosto, que eu comia as primeiras uvas do ano, a prenda crónica dos meus pais. Nesse dia, queria sempre comer uvas … e saber se houve a pancadaria habitual! Nunca soube de onde vinham as uvas, nem me interessava. Voltava a comê-las uma semana depois, compradas na Festa da Sra. Aparecida. As de casa dos meus pais e avós, só muito mais tarde começavam a amadurecer. E eu sabia bem onde as havia boas, em casa e fora, às vezes pintadas com “roxo rei” para não lhe tocarmos. Por isso, nasci e cresci em comunhão com videiras e uvas, até quando só procurava o ninho de melro. Tenho excelentes recordações desse tempo, das uvas e vindimas, da alegria e prazer de viver. E as vindimas eram um hino à felicidade, próprio de bilhete postal. Por ser “véspera” de Outubro, lembrei-me das vindimas, tanto nos quintais de meus pais como no campo da minha avó. Neste, ainda vejo os homens a levantar escadas enormes de madeira de vinte e tal passais para ir colher as uvas das videiras que trepavam bem alto, agarradas às árvores, normalmente lodos, plátanos e mais raramente, castanheiros ou cerejeiras, no que chamavam “vinha de enforcado”. E era preciso ter um misto de força e equilíbrio para conseguir levantar uma dessas escadas compridas e encostá-la à árvore, como para a mudar para outra sem a deixar cair. À mínima distração ou pequeno desequilíbrio, a escada caía com estrondo, estendida no campo entre a erva e os “estrepes” dos pés de milho, às vezes desfeita em bocados. As vindimas eram sinónimo de festa e, sobretudo, de um dia em que se comia melhor. Participava a família, amigos e vizinhos, em colaboração comunitária sem qualquer pagamento, a não ser a comida. Armados de escadas de madeira, de abrir para colher nas ramadas, ou de passais para subir às árvores ou bardos altos. Geralmente eram os homens que colhiam para grandes cestas com gancho, enquanto as mulheres controlavam e carregavam os cestos à cabeça para o carro de bois ou diretamente para o lagar se fosse perto. 

Nós, miúdos, apanhávamos os bagos caídos na colheita, sob o olhar atento de uma mulher mais velha, que nos ia espevitando com a frase do costume: “conheço um homem que fez dez pipas de vinho só com bagos” …

A vindima era sinónimo de alegria e animação, misto de conversas, cantorias e começo de namoricos. De vez em quando, alegrada com um berro prolongado lá do alto da escada para chamar a atenção da mulher do cesto, sinal de que a cesta estava cheia, com um alegre “Oh cesteiraaaaaaaaa”!!!

À volta do campo onde a minha avó semeou durante muitos anos os melões “casca de carvalho”, existiam videiras a trepar pelas árvores acima, com alturas variadas, que davam um excelente vinho tinto no dizer dos “bebedores” que, nessa época, eram muitos. É que, “beber vinho era meia mantença” e desde tenra idade o vinho fazia parte da ração diária. Aliás, a miudagem era “iniciada” no consumo de álcool desde o berço, pois a forma de adormecer um bebé quando estava a berrar entre os trapos onde o embrulhavam , era meter-lhe na boca a “boneca”, um pano enrolado embebido em aguardente …

Vindimas também significavam sardinhas fritas sobre um bocado de broa, regadas a vinho tinto; mudar a escada de um lado para o outro; mulheres a carregarem os cestos de uvas à cabeça sobre a “rodilha”; e o arregaçar das calças, lavar (e mal) os pés no alguidar de barro para pisar uvas no lagar ou numa dorna. Nesse tempo, a quase totalidade das uvas eram tintas. É que, vinho, vinho, só era considerado o verde tinto. O verde branco, dizia-se, “era para senhoras”. E, como se vivia numa época de “machos”, sempre prontos a afirmar a sua condição, homem que se prezasse bebia verde tinto. Nem branco, nem maduro, nem cerveja. Só tinto. Era normal no final do dia de trabalho entrar-se na loja ou tasco, pedir um copo de vinho (tinto e de litro) e “virá-lo de tiro”, isto é, de uma vez só. As uvas brancas ou eram atiradas para o meio das tintas onde o “vinhão” compensava a falta de cor ou o caseiro da quinta fazia meia ou uma pipa de vinho branco para ser consumido pelo senhorio na parte que lhe tocava da renda. É que nas “lojas” ou “tascos” só se vendia verde tinto, que os apreciadores bebiam em canecas de porcelana depois de as agitarem duas ou três vezes para ver formar o “lasso”, sinónimo da qualidade da “pinga”.  

O vinho era muito importante para as pessoas desse tempo, porque fazia parte da sua alimentação, por mais pobre que fosse a casa. Em todas as refeições. E, como eram tempos difíceis, uma das formas de “esticar” a capacidade de transformar as uvas em vinho e aumentar a quantidade, era fazendo a “água-pé”. Depois de retirado o vinho do lagar para as vasilhas (pipas ou pipos), ao bagaço que ficava antes de espremido juntavam-se alguns almudes de água com vários quilos de açúcar. Depois de nova fermentação, obtinha-se a “água-pé”, aquilo que se poderia chamar de “vinho dos pobres”, com baixa graduação e pouco poder de conservação. 

Vieram-me à memória estas lembranças porque ontem um agricultor desabafava comigo sobre a grande dificuldade que tem de arranjar pessoal para a vindima. Dizia ele que tem de se desenrascar só com a mulher e duas filhas para vindimar toda a quinta, o que o obriga a prolongar a colheita por várias semanas. Da velha geração, recordava com muita saudade o tempo em que a vindima era um acontecimento comunitário, misto de trabalho e confraternização. E agora, mesmo pagando bem e alimentando melhor, não consegue arranjar gente para a vindima. “Sinal dos tempos”, dizia ele. 

Eu fiquei a pensar que é a “agricultura de sobrevivência” a dar lugar à “industrialização agrícola”. E, como diz o velho agricultor, “um sinal dos tempos” …

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