Na corrida dos dias e na estranha pressa de viver o amanhã à espera de que seja bem melhor que hoje, não chegamos a usufruir de tudo aquilo que temos no presente, no agora. E a prova disso é que não nos demos conta do quanto nós éramos felizes até há somente dois meses atrás, um passado tão recente e que todos nós, sem exceção, queríamos ter de volta. Como não nos apercebemos de muitas outras coisas que são parte da nossa vida, mas que os dias de pressa deixam ficar para trás, esquecidas ou abandonadas, enquanto o nosso tempo se perde. E nessa pressa, aqueles que têm mais idade seguramente são os primeiros a ser descartados, ignorados, abandonados à sua sorte. Numa pequena frase, Domingos Lopes disse mais que muitos num grande tratado: “num mundo dominado pela implacável mão justiceira do mercado, o velho é uma mercadoria que nem sequer dá para inventário”. Por isso, é marginalizado, contentado com pouco, deixado preso a um qualquer lugar onde não incomode e não seja visto, para sossego de consciências. Mas às vezes alguém olha para o mundo que o rodeia com olhos de ver e levanta a voz. Aconteceu com o economista Jorge Silveira Botelho no momento em que o seu olhar atento se fixou naqueles a quem o tempo já não cede muito tempo:
“Só um imbecil é que é indiferente ao sofrimento dos outros, mas não é por isso mesmo, uma maior prioridade, defendermos como maior princípio procurar dar condições dignas aos que são abandonados pela sorte e que querem viver, mas não têm como? Não é por esses idosos que se amontoam nos sítios mais inóspitos, que devemos lutar pelo seu direito também a terem uma vida decente e não a continuar a fingir que não existem? Se calhar andamos a esfregar as mãos há demasiado tempo, desviando as atenções para causas que se fecham em si mesmas e ignorando deliberadamente o flagelo oculto que está a assombrar a terceira idade. Porque a continuar assim, a pobreza envergonhada que se esconde por detrás do envelhecimento desta sociedade, vai ter como destino uma paragem obrigatória na “Boa Morte”.
É bom que tenhamos consciência que vamos ser o fardo de amanhã e que corremos o risco de que também ninguém queira pegar em nós, nesta sociedade envelhecida, endividada, desigual e profundamente egoísta. Somos os próximos a querer ocupar o tempo que os outros não têm para nos dar e que nos vão querer fazer sentir que estamos a mais, porque somos uma fonte enorme de desperdício de recursos …
Talvez nem nos vamos aperceber, mas podemos ser os próximos a sentirmo-nos envergonhados, simplesmente por querer reivindicar o direito de viver!”
Sejamos realistas, usando o chavão “este país não é para velhos”. É a sociedade que criamos e temos, política, económica e culturalmente. Salvo em momentos pontuais, como é o caso dos períodos eleitorais em que são muito requisitados, adulados, distinguidos, considerados, reconhecidos, elogiados e, sei lá, objeto de inúmeras promessas (que não passam disso mesmo, de promessas), por regra são ignorados e esquecidos pelos poderes públicos, quando não pela família. Se houve um tempo em que eram respeitados na família e na sociedade pela sabedoria, experiência e história de vida, os ventos da sociedade do século XXI e o aumento da longevidade fizeram deles um peso morto para o estado e família (salvo muitas e boas exceções), condenados ao canto do esquecimento como trastes inúteis e descartáveis. E nem sequer o facto de viverem com familiar é garantia de serem tratados com respeito e consideração e de estarem protegidos de maus tratos físicos e psicológicos.
Ora, estes mais de dois milhões de portugueses (é, ainda continuam a ser portugueses!), como se não lhes bastasse os problemas referidos, são agora o alvo privilegiado para essa “coisinha” que anda por aí e não se vê. Um alvo em função do “bilhete de identidade”, agora feito cartão de cidadão, por terem nascido há muitos anos. Pelo que dizem, o vírus discrimina os velhos, ataca-os e leva-os à morte antes daquele tempo que eles julgavam ser o seu. Nada a que os velhos não estejam habituados, pois a sociedade de mercado em que vivemos, onde vale só quem produz, também os discrimina, pois além de não produzir, ainda ocupam espaço necessário, consomem grande quantidade de recursos à sociedade, são um empecilho e não se sabe bem que fazer com eles. E, com franqueza, isso é cá uma grande chatice …
O aparecimento desta pandemia, trouxe à ribalta “esta faixa etária da população” (como agora se diz), deu-lhes visibilidade e até são muito falados, coisa que não acontecia há muito tempo. Esse pequeno vírus
deu-lhes protagonismo, fez deles o tema principal das notícias, pois todos os dias aparecem na imprensa como “objeto de estatísticas” na contabilidade dos números apresentada nos telejornais à hora das refeições. “Morreram 15 idosos num Lar em …” ou “60% dos mortos tinham mais de 70 anos”, relatam os apresentadores. O vírus dá-lhes a prioridade nos noticiários que nunca tiveram e agora “compõem” os números, fazendo com que as estatísticas tenham dimensão, diria até, grandeza. Mas, não tenhamos ilusões. Quando esta crise passar e tudo voltar ao normal, os que por cá ficarem voltarão à sua condição de ignorados, esquecidos e abandonados, o lugar que tem sido o seu.
Na impossibilidade, verdadeira ou não, da família ser o seu “porto de abrigo”, os Lares são a alternativa, o mal menor para quem não pode nem deve estar só. E tem sido precisamente nestes locais que o vírus tem provocado a maior razia, qual “raposa em galinheiro”, quando o contágio não consegue ser contido. Sinto o drama, a incapacidade, o desespero e o medo daqueles que nesses lugares têm de travar uma batalha continuada e difícil, numa missão quase impossível “para salvar os seus velhinhos” de uma doença que lhes pode ser fatal.
Eu sinto-o profundamente porque, na grande maioria, as Instituições não têm recursos adequados para este combate, que exige espaços, colaboradores substitutos para as “baixas em combate” e todos os equipamentos de proteção individual em quantidade e qualidade. E o Estado, a quem cabe a responsabilidade de cuidar dos idosos, “passa a bola” às instituições a troco de uma comparticipação ridícula que as deixa “em maus lençóis” para a gestão do dia a dia, quanto mais para travar um combate como este para o qual não têm “nem armas nem munições”. O Estado comparticipa os custos duma pensão rasca, mas exige hotel de cinco estrelas. E sinto muito as críticas que têm sido feitas a instituições que fizeram o seu melhor, com os (poucos) meios que o (pouco) dinheiro lhes permite. Seria muito mais justo que o Estado relevasse o trabalho excecional das Instituições, em vez de salientar nas conferências de imprensa a contabilidade de mortos em Lares, como se estes fossem local de “condenados à morte”. Uma luta inglória que, essa sim, é bem injusta …
E nem na hora da verdade o Estado assume a responsabilidade dos idosos ainda infetados, empurrando-os à pressa de volta aos Lares como se estes fossem aquilo que não são: hospitais … E não tenhamos ilusões: para um Estado pobre e demasiado endividado, quando tiver de deliberar sobre onde fazer o investimento, seguramente os velhos vão ser esquecidos, como o foram noutros países quando, por falta de ventiladores, foi preciso decidir quem vivia e quem morria. É, já não compensa “ligá-los à máquina”, porque são “Velhos” …