A campainha da rua tocou. Era o senhor José que queria falar comigo. Abri-lhe a porta, mandei-o entrar e dirigi-me a ele de mão estendida. De imediato, ele deu dois passos atrás e olhou-me muito admirado, como se eu tivesse cometido o maior sacrilégio. Só então me lembrei que já não há lugar a cumprimentos, muito menos a beijos e abraços. Temos de ficar à distância uns dos outros, afastados, até daqueles de quem gostamos …
Este é mesmo um tempo único, algo que nunca vi, nem imaginei ver. Se me falassem em algo do gênero, diria que só acontecia nos filmes de ficção científica. No entanto, há cinco anos atrás o multimilionário Bill Gates já fazia palestras a alertar que isto viria a acontecer mais dia menos dia e que os países se deveriam preparar para quando esse momento chegasse. Por alguma razão se tornou no homem mais rico do mundo … por muitas razões ninguém o quis ouvir …
Ora, sendo este um tempo único, veem-se as coisas mais invulgares, originais, estranhas e absurdas, tal como os comportamentos de uns e outros: algum dia pensei ver mais de dois mil milhões de pessoas enclausuradas em casa, naquilo a que chamam “isolamento social”, caso único na história da humanidade? Como é possível um mundo parado, com milhões e milhões de fábricas e todo o tipo de recintos desportivos, recreativos e culturais encerrados? Algum dia imaginei ver missas e todo o tipo de celebrações religiosas sem fieis? De ver as lojas, ginásios e estabelecimentos de ensino diversos sem a atividade que os caracteriza, sem dia nem hora para reabrir? Não é no mínimo estranho ver uma fila em que as pessoas estão dois metros ou mais separadas umas das outras? Que se passa para que, das pequenas vilas às cidades de milhões e milhões de habitantes, as ruas, praças e avenidas estejam desertas, como se os seres humanos tivessem ido para nenhures? Se há gente a cumprir religiosamente os cuidados recomendados na prevenção contra o vírus, há também quem nem sequer acredite que ele existe (como houve e ainda há, quem não se convença que há cinquenta anos Neil Armstrong foi à Lua).
Se há quem respeite e cumpra o isolamento social para conter a pandemia, por acreditar ser a melhor forma de cuidar de si, além dos outros, também sabemos existir demasiada gente que não tem qualquer respeito pelo aconselhamento das autoridades, nem sequer das leis que os obrigam a ficar em casa. Viu-se nas longas filas das estradas e autoestradas deste país, como se fosse um tempo de férias. A par do açambarcamento de alguns, há a partilha de outros. Contrariando a especulação vergonhosa de oportunistas, vimos dádivas solidárias de gente bondosa. Ao lado dos profissionais de saúde entregues à nobre tarefa de salvar vidas cuidando dos outros até à exaustão, há quem não esteja disponível para colaborar nas coisas mais básicas, como se não fosse nada com eles. Enfim, um mundo parado, feito de heróis e do seu oposto, sem atividade, mas com esperança …
Nunca se viu um dia de Páscoa assim, em que não pudemos celebrar juntos a Ressurreição de Cristo. Ficamos privados da visita pascal, de receber o Senhor em casa, pela mesma razão pela qual a ela estamos confinados. Para compensar a perda e afirmar a condição de crente,
durante a manhã apanhei algumas camélias, abri a porta da rua e fiz uma pequena cruz florida à entrada. Depois, fiquei ali a olhar aquela cruz colorida onde faltava um Cristo que lhe desse sentido e lembrei-me dum texto escrito por Graça Alves, que se ajusta perfeitamente à minha cruz de flores, simples, mas colorida. Como ela, fiquei a pensar que o Cristo que falta na minha cruz, está de Serviço. Mas é preferível deixar que as suas palavras, que reproduzo, emocionem os leitores como me emocionaram a mim:
“Tenho a cruz à porta. Vazia. Ok. O Cristo da minha cruz foi cuidar de quem cuida, vestiu a bata e anda pelos hospitais do mundo inteiro a segurar a vida que anda suspensa nos beirais da História.
O Cristo da minha cruz vai dentro das ambulâncias que correm pelas cidades desertas, em lutas contra o tempo e contra a morte e foi percorrer o mundo inteiro, evitando os desesperos de quem não sabe como vai ser a vida a seguir.
O Cristo da minha cruz foi suster o ânimo dos que criam as vacinas, os medicamentos, um meio seguro de nos salvar a vida. Foi ajudar quem trabalha na terra, quem foi pescar, quem faz o pão e mo entrega em casa.
O Cristo da minha cruz foi abraçar os braços vazios de abraços, foi dar a mão a quem morre sozinho, foi limpar as lágrimas dos que não podem dizer adeus a quem amam, dos que andam nas ruas vazias a recolher o lixo, a desinfetar as praças, a limpar o medo e a acompanhar as solidões que espreitam as esquinas.
A minha cruz está vazia. E eu sei (sabemos todos) que esta Semana Santa será Maior do que tantas Semanas Santas das nossas vidas: Cristo lavará os pés a todos os que, exaustos, não desistem de lutar pela vida e beijá-los-á, certamente, porque são esses os pés que, nos nossos dias, anunciam a esperança e fará com eles a Ceia de Quinta-Feira; estará à beira dos que sofrem e morrem, ajudando-os a percorrer o caminho que une o chão ao infinito e consolando os que, à beira das cruzes que se erguem no mundo inteiro, têm o coração em frangalhos.
O Cristo da minha cruz (vazia, minha cruz) está vivo. É o rosto cansado dos que não veem os filhos há muitos dias, porque têm de os proteger. Está nas mãos dos que enfrentam o medo (todos têm medo) para ajudar quem precisa. Enxuga as lágrimas dos que estão sós. Está nos que têm de tomar decisões (difíceis, as decisões). Está nos que nos mantêm informados e nos dão esperança no meio do povo. E não o deixa cair na tentação de desanimar, apesar de todos os cansaços, apesar de tudo.
Tenho a cruz à porta. Vazia. O Cristo mudou-se para dentro de cada um”.