Ainda hoje tenho saudades da comida da minha mãe, apesar dos muitos anos que já me separam da infância. Retenho memórias dos seus cheiros e dos sabores que lhe são característicos e que o tempo não esbateu. De tal forma que, quando a vida me fez sair de casa e tomar outro rumo, custou-me bastante a adaptação a novos aromas e paladares bem diferentes daqueles a que estava habituado, que eram as minhas referências gastronómicas. Numa cozinha simples, com um fogão a lenha que eu gostava de alimentar metendo cavaco atrás de cavaco, mas com todas as cautelas para não me chamuscar, dotada somente de dois tachos e outras tantas panelas, não havia máquinas nem apetrechos de cozinha como hoje. No entanto, a comida sabia tão bem, que não esqueci nunca. E nem eram os cozinhados mais complicados que me atraíam e que eram muito raros, mas as coisas simples desse tempo em que não havia margem para escolher: era aquilo ou então, “aquilo”. A “escolha” estava feita por natureza. Mas a comida da minha mãe tinha um paladar tão próprio!!! …
Em casa dos meus pais a carne de porco era a eleita porque o pai não gostava de carne de vaca. Por isso, seguia-se a tradição matando um porco no inverno segundo os usos e costumes da região, que acabava guardado na salgadeira, a forma tradicional de conservar a carne, até porque não havia frigoríficos nem arcas. E tinha der ser gordo, muito gordo mesmo, pois na aldeia havia uma espécie de competição para ver quem tinha o porco mais pesado. Era normal matarem-se porcos com mais de quinze arrobas. Dali saíam os presuntos, pás e “calubas” para serem dependuradas na cozinha tradicional em casa da minha avó, juntamente com os enchidos, salpicões e chouriças de sangue, e tudo o mais “rendia” ao longo do ano. Do porco, entre outros, ficou-me o gosto pelos ossos de assuã (ou de assuão) no caldo verde. Os ossos são cozidos no próprio “caldo” e a sua gordura dá-lhe um sabor especial. Assim preparado, o caldo verde era servido em prato ou numa enorme “malga”, regado com um fio de azeite e muitas vezes coberto com folhas de hortelã (dizia-se que eram boas para combater as “bichas”).
Em simultâneo com o caldo, ia-se rapando dos ossos, pacientemente, a pouca carne que lhes estava agarrada, ficando o “tutano” para o final. Certo é que, agarrado ao osso, não ficava um bocadinho de carne sequer. Quem não gostava desse “excesso de zelo” era o cão…
No dia da “desfazedura do porco” também se preparavam os rojões num grande tacho, usando para o efeito quase só carne da barriga porque os rojões entremeados eram (e são) os melhores. No meio deles havia uns especiais, os “rojões do redenho”. Para quem não conhece – e ainda há um ou outro restaurante de comida tradicional que os tem na sua ementa – são feitos com a gordura que envolve os intestinos e que, posta a “regir” juntamente com a carne dos rojões normais, dá esse produto saboroso, desaconselhado por médicos e excluído da dieta alimentar pelos nutricionistas dado o seu elevado teor em gordura. Mas que são saborosos, não há dúvida.
Como a comida era escassa, sempre que era possível deitar a mão a alguma coisa que se “trincasse”, não se perdia a oportunidade, muito especialmente à tarde. Bastava uma fatia de carne gorda defumada sobre um pedaço de broa para me parecer um grande manjar ou até uma cebola crua. Talvez por a ter comido com frequência, ainda hoje me sinto atraído por cebola crua e não consigo disfarçar, embora também goste dela assada, frita ou até cozida. É normal nos assados, cozidos, saladas ou noutro prato qualquer em que venha envolvida, dar sempre comigo a tirar dose reforçada, mesmo que tenha de ouvir frequentemente um “vais ficar a cheirar a cebola”. Continuo a gostar mais dela crua, em natureza. E há duas maneiras de a consumir que vêm desses tempos de infância e que já tinha posto de lado há muitos anos. Uma delas só é possível pouco tempo depois da plantação do “cebolo”, depois dos bolbos se começarem a formar e ao atingirem a grossura de um dedo. Arrancam-se com rama, limpam-se as folhas velhas, corta-se a ponta da rama e passam-se por água. Prepara-se numa malga o molho, com azeite, vinagre tinto e sal grosso. Cortam-se as pequenas cabeças da cebola em quatro e vão-se molhando à medida que se vão comendo. São sempre boas, tanto a acompanhar a refeição como numa petiscada. Agora, voltaram a fazer parte do meu “cardápio gastronómico” a partir do momento em que cá em casa se começaram a plantar no pequeno “quintal” ou quando pessoa amiga se lembra de mim.
Também gosto de cebolas grandes cruas, com sal grosso, daquele que é usado para salgar os porcos. Descascadas e abertas em quatro, com o sal metido no meio e apertadas para entrar bem, são uma delícia. Mas não posso abusar. Não que a cebola me faça mal, mas pelo mal que o excesso de sal faz à minha tensão arterial. Acompanhada com um naco de broa e, claro, regada com bom vinho tinto, diz o povo que “sabe a galinha”. E vá-se lá saber porquê…
Nesse tempo distante em que a comida era pouca e havia “deficit” de calorias na alimentação, rigorosamente ao contrário de hoje em que os excessos alimentares são mais que muitos, nalguns dias quentes de verão a minha mãe fazia o favor de me preparar “sopas de cavalo cansado” a meio da tarde. O nome deste “reforço alimentar” parece resultar de alguém, com ou sem intenção, ter recuperado as forças do seu cavalo com este alimento. A minha mãe usava uma grande malga (agora chamada de tigela) onde misturava broa desfeita, vinho tinto e açúcar amarelo e estavam feitas as sopas, que comia com prazer. Por isso, ainda agora quando me lembro delas na época estival, vou até à cozinha e preparo essa “velha receita” a que alguém deu o nome de “sopas de cavalo cansado” e acompanho com uma tira de “bacalhau da peça” para contrastar o doce com o salgado. E, embora já não sejam necessárias como fonte energética como o eram antigamente, continuam a ser uteis, quanto mais não seja para aplacar a saudade …