Quando andava na escola primária, levava os poucos apetrechos e livros que tinha numa saca de pano que a minha mãe fizera em casa, aproveitando alguns restos de tecido para o efeito, pois a maioria dos meus colegas não só não tinha saca como nem sequer os livros. Uma coisa era comum a todos nós: a “lousa”, aquele retângulo de ardósia relativamente fino envolvido num caixilho de madeira com os cantos arredondados, para fazer tanto os trabalhos de casa como os da sala. Escrevia-se na lousa com um lápis também de ardósia e, para apagar, bastava aplicar-lhe uma valente cuspidela no meio do “retângulo”. E a manga da camisola fazia o resto. A professora escrevia as parcelas das contas no quadro e nós copiávamos e fazíamos a multiplicação, a soma ou outra conta na “lousa”, indo depois mostrar-lha para ver se estava certa ou errada. Já os trabalhos de escrita, como as redações, cópias ou repetição de palavras, eram normalmente efetuados num caderno de duas linhas, onde as letras eram desenhadas com uma “pena” de aparo que se molhava regularmente no tinteiro existente no tampo da carteira, cheio com tinta da marca “Pelikan”. A “lousa” era o nosso “tablet” de outrora, usada para escrever, fazer contas e trabalhos diversos que pudessem ser apagados, ficando disponível para novo uso vezes e vezes sem conta. Não tinha desgaste nem era descartável. Só quando partia acidentalmente ou no meio de uma rixa é que deixava de ter utilidade e tinha de ser descartada e substituída por outra, o que não era mau para todos, pois as gentes de Valongo que as fabricavam agradeciam.
Quando fiz o exame de admissão no final da 4ª. Classe e entrei no 1º. Ano do liceu, ou melhor, do Colégio Eça de Queirós já que não existia liceu em Lousada, desapareceu a “lousa” dos apetrechos escolares, passando a objeto de museu, substituída por cadernos e sebentas que foram evoluindo com o tempo e com as alterações do ensino, para os mais diversos tipos. Se a “lousa” era um artigo de uso constante e repetido, em que nada era descartável (a não ser a cuspidela), já o caderno era aproveitado até à última página porque, sendo material descartável e como o dinheiro era “curto”, pensava-se duas vezes até se decidir comprar um novo.
Foi assim durante todo o liceu e assim continuou a ser em Coimbra, não havendo lugar a desperdícios nem a usos indevidos do material.
Quando comecei a trabalhar num organismo público depois de ter cumprido o serviço militar, sempre que precisava de um caderno, bloco de papel, esferográfica ou um simples lápis, era-me entregue pelo responsável do material de escritório e registado num livro como se de uma preciosidade se tratasse, sendo o seu uso controlado por forma a não haver aproveitamento para outros fins que não os do serviço. Com o passar dos anos e a (aparente?) evolução económica do país, abrandou-se no rigor do controle dos consumíveis e estes descambaram de forma acelerada, pois o descartável passou a ser descartado com o máximo das facilidades, como se não tivesse um custo e o fornecimento fosse ilimitado.
Usar papel ou outro artigo qualquer de forma displicente e descontrolada passou a ser o “pão nosso de cada dia”, sem responsabilidade e impunemente, porque a euforia da (boa?) situação económica tudo permitia. Quando a crise chegou foi necessário cortar nas despesas, a começar no desperdício porque era despesa inútil que a ninguém servia, mas isso já não foi fácil. Recordo uma conversa que tive nessa altura com o responsável de um Organismo público. Os cortes orçamentais de então levaram a que ele fosse nomeado para reorganizar e controlar os consumíveis dentro do organismo, pois estavam fora de controle. A falta de verbas e financiamentos implicavam uma redução global na despesa, para se não entrar em colapso. Mas ele deparou-se com grandes problemas quando quis disciplinar chamadas telefónicas, consumo de papel, lápis, fotocópias, esferográficas, réguas, borrachas e outros artigos, porque encontrava uma forte oposição da parte do pessoal que não aceitava tal imposição. Dizia ele que os maus hábitos de longos anos e a impunidade pelos consumos excessivos e desregrados criaram nas pessoas como que o sentimento de um direito adquirido, o “direito ao desperdício”.
Thomas Fuller resumiu tudo numa simples frase: “Enquanto o poço não seca, não sabemos dar valor à água”. E é verdade. Como ao abrir a torneira corre água, ao acionar o interruptor acende a luz, ao irmos ao supermercado há sempre muitos alimentos para comprar, na loja de vestuário nunca faltam “trapos” para nos tentar, não valorizamos nada. Mesmo, nada. Por isso, damo-nos ao luxo de ser “desregrados no consumo”, quando não consumidores obsessivos sem respeito por quem tem de pagar o que gastamos, sem respeito pelos outros que também têm direito a ter algo para consumir, sem respeito por nada nem ninguém, muito menos pela natureza de que fazemos parte, que não é infinita no manancial daquilo que nos dá. E tudo isso até ao dia em que ao abrirmos a torneira não saia nada, ao acender a lâmpada ela continue apagada ou não tenhamos bens para desperdiçar nem para consumir.
Já Alex Periscinoto dizia que “tudo é infinito até que vire finito. Desperdiçamos tudo – água, luz, mantimentos, porque pensamos que esse tudo vai durar para sempre. Errado” …
Quando nos anos oitenta passamos pela crise do petróleo, o preço dos combustíveis subiu muito e bastantes vezes. Sempre que havia aumento, comentava o assunto com um colega bastante mais velho (e sábio) do que eu. E em todas as ocasiões em que me queixava pela subida do preço da gasolina, ouvia-o comentar: “Ainda não está cara”. Depois de ter aguentado aquela “lenga, lenga” várias vezes e já farto da “cassete”, perguntei-lhe: “Oh inteligente, diz-me lá: se ainda não está cara, qual é o dia em que tu me vais dizer que está mesmo cara”? E ele, com ar cínico, respondeu-me: “No dia em que fores a um posto de abastecimento e te digam que não há, nem haverá mais”!!!
Tudo o que consumimos em excesso, por egoísmo e com desperdício, pode ser-nos devolvido em escassez e privação. A nós ou aos nossos filhos. Porque “o desperdício de hoje, pode ser o que nos vai faltar amanhã” …