Depois do jantar, fico sentado junto da Luísa até às tantas, dividido entre o computador e a televisão onde passam os programas que a sua sensibilidade suporta. Na prática, a televisão está ao seu serviço, não ao meu. Assim, sempre que manifesta incómodo pelo programa que passa no momento, mudo de canal rapidamente. Tolera bem os “Got Talent”, “The Voice”, um pouco o “Telejornal” até chegar alguma notícia chocante e os programas do tipo “Somos Portugal” ao fim de semana, mais um ou outro neutro. Não gosta de ação ou violência e só vê alguns filmes dentro da mesma lógica. Quando não há programa adequado ou não tenha gravações aceitáveis, salto de canal em canal à procura de algo que a não faça reagir de desagrado.
Numa dessas buscas fui parar ao canal onde decorria um episódio de “Casados à primeira vista”, na Austrália, mas, confesso, considerei tão absurdo e ridícula a filosofia do programa, que mudei imediatamente de canal. Já ouvira falar nele e criara-lhe alguma “aversão”, pois não compreendia como é que alguém se sujeitasse a casar sem conhecer a pessoa com quem iria viver. Achei que era mais uma das “aberrações” que a televisão cria em nome do “vale tudo” para conseguir subir nas audiências. Nos dias seguintes, por diversas vezes passei por ali, mas mudava sempre para não dar à Luísa um “produto” daqueles. Porém, sem uma razão especial, uma ocasião a televisão ficou ali sintonizada e fui vendo a espaços as incidências e consequências dos casamentos. E a curiosidade levou-me a querer perceber a mecânica do programa e, muito especialmente, as motivações das pessoas que se dispõem a participar numa exposição pública do que pode ser ou não um lado importante das suas vidas. E se a minha primeira reação foi recusar ver tal “disparate” por não achar aceitável que alguém se case com uma pessoa que não conhece, depois de ver algumas partes fiquei a pensar nas razões que terão originado o programa e que poderá não ser assim tão absurdo como “à primeira vista” parece.
O mundo mudou e tudo mudou à nossa volta. E nesse tudo, incluído está o modelo dos “encontros” e de casamentos, o conceito de casal, a (aparente) facilidade com que as pessoas se relacionam, a pressa com que se “juntam os trapinhos” e a velocidade estonteante com que se separam. E, no essencial, a destruição da família como célula fulcral da sociedade e os “cacos” que ficam como seus falsos substitutos. O certo é que, a cada ano que passa e apesar de vivermos num tempo em que tudo parece fácil para se criar relações, os encontros e todas as facilidades (aparentes) de relacionamento não evitam que cada vez mais pessoas, que não o desejam, vivam sozinhas contra a sua vontade. E não é isso que desejavam. Essa gente, na maioria, quer e precisa de alguém com quem partilhar o dia e a noite, os problemas, o sofá, a televisão, enfim, a vida. Mas estão sós. Muitos são os que, para enganar a ausência, afogam-se em noitadas de sexo sem companhia, de álcool, quando não de drogas.
Mais de 40% dos portugueses são solteiros e, além destes, tem aumentado os viúvos e, mesmo muito, o número de divorciados pela facilidade com que hoje se descarta o casamento. De tal forma que alguns deles se assemelham à pescada: “antes de o ser já o era”. Isto traz-nos uma realidade nova que cresce dia a dia, sem que se imagine forma de a diminuir. Mas diminuem os “compromissos” porque, apesar das facilidades, a vulnerabilidade necessária a um relacionamento saudável é mais rara, já que subiu a desconfiança, a dúvida, o ceticismo. Provavelmente, a questão é que a maioria já nem sequer o sabe fazer.
Outrora, as fases de uma relação eram: “Conhecimento, compromisso e sexo”, enquadradas em regras tradicionais rígidas. Mas a evolução da sociedade até aos nossos dias fez com que a ordem fosse alterada para “Sexo, conhecimento, compromisso”. No entanto, a facilidade de “conseguir logo à primeira” aquilo que seria o fim último, tornou-se sério obstáculo em alcançar o “compromisso” porque a satisfação do instinto animal fora conseguida sem necessidade de o assumir. E isto somado à ligeireza com que se desfaz o casamento e se descartam as relações, só vem acrescentar números aos inúmeros casos de solidão. Ora, a chegada de um programa deste género, onde se promete que “uma boa equipa de especialistas vai decidir por si”, com base no seu perfil psicológico e no de muitas outras pessoas, ao ser divulgado em “campo de muitas necessidades”, só pode ter enorme adesão entre gente que já tinha desistido de procurar a sua “cara-metade”. E não deixa de ser curioso que altera e estabelece o novo alinhamento das tais três fases: “Compromisso, conhecimento e sexo”, ordem essa já mais ajustada à moral cristã. Portanto, é natural que grande parte dessa gente se questione: “Porque não? Vale a pena tentar”. Reparei que muitos concorrentes chegam a dizer “já tinha desistido de tentar encontrar a alma gêmea”. Assim, alinham no programa como outros o tentam pela internet em sites de relacionamentos. O desespero já não impõe condições. Isso passa-se em todo o mundo, sendo o problema tanto maior quanto maior é o desenvolvimento da sociedade. E o expoente máximo dessa solidão e incapacidade de assumir relações é o Japão. Hoje, na era do digital, da velocidade, parece impossível que metade dos jovens adultos japoneses sejam virgens e que tenham dificuldades enormes ou mesmo incapacidade de se relacionarem com mulheres. Estas dizem até que é difícil conhecer pessoas depois de passarem os 25 anos. Serão assim tão velhas? A situação é de tal forma grave que os municípios, instituições e empresas promovem os “Encontros às cegas” e “Festas de solteiros”, juntando milhares de pessoas para estimular “uniões”. E os casais organizam festas com pequenos grupos, para a qual convidam amigos e amigas que não se conhecem entre si, só para “fomentar ligações”.
E quantos sites de relacionamentos não existem por esse mundo fora para juntar pessoas que se não conhecem? Quantas organizações de viagens turísticas destinadas a pessoas sozinhas com esse objetivo?
Se a minha primeira reação foi de uma recusa absoluta do processo e a crítica dura a todos os que alinham no programa, ao parar e pensar acho que é de elogiar a coragem de muitos deles ao arriscar e expor publicamente, como que em tentativa desesperada para não ficar só. Será preferível sair da concha e arriscar, dizer que “preciso de ajuda” ou desistir de ir à luta, de tentar e deixar-se ficar em casa derrotado, com uma vida “preenchida pela tristeza e frustração, quando não de revolta e até ressentimento com quem está perto”?
No tal programa, os participantes fazem o caminho contrário ao de um “casamento normal”, partindo do “compromisso para o sexo”, enquanto neste partem do “sexo para o compromisso”. O conceito e os princípios não estão assim tão errados como se pode pensar.
Claro que o programa enferma de vários senãos, sendo o principal o não se conseguir saber o que é real e o que é teatro, além da pressão que há sobre os casais para “avançar na relação” em função de necessidades televisivas, como se as relações possam evoluir ao tic tac do relógio e conveniência de audiências. Não se dá tempo ao tempo que o namoro exige, nem a liberdade para que ambos se conheçam e em que esse tempo é essencial. Em suma, o programa usa um problema grave da sociedade, crescente e comum a milhões de pessoas que todos temos obrigação de conhecer e sobre ele refletir, pois a qualquer momento podemos incorporar essa legião. E se assenta em princípios básicos corretos, o processo padece dos erros próprios de um programa que, explorando uma realidade dramática, não se desvia um milímetro do objetivo principal na guerra das audiências, a qualquer preço …
Que o tema é sério, ninguém duvida. Tal como dizia Geraldo Fontes, “viver sozinho é um problema, uma escolha ou um fracasso” …