Pequenos gestos, grandes ganhos…

Sentado confortavelmente na varanda do apartamento, observava o movimento numa das principais artérias de Viseu naquela manhã de domingo, quando surgiu de uma rua lateral um grupo com cerca de vinte rapazes e raparigas, andando passeio abaixo e empunhando cartazes onde se lia em letras garrafais: “QUER UM ABRAÇO?” E os transeuntes que encontravam, surpreendidos e curiosos com aquela iniciativa, paravam e aceitavam, quase sempre bem, um ou mais abraços dos jovens. E seguiam sorrindo, como se tivessem recebido uma prenda de Natal, enquanto o grupo continuava lentamente pela rua fora. Fiquei ali na varanda muito para além de os ver desaparecer ao fundo, roído de inveja daquela simplicidade, ingenuidade e dádiva ao outro, mesmo que desconhecido. 

Dei comigo a pensar que vivi um tempo em que nada disto era possível. Fomos formatados com outros princípios comportamentais, em que as relações interpessoais nada tinham a ver com os dias de hoje. O simples “toque” entre familiares era muitíssimo reduzido, quanto mais com estranhos. Não me lembro de grandes abraços e a saudação aos pais e avós era oral, num “vote-me a sua bênção meu pai” ou “vote-me a sua bênção minha mãe”. Já à minha avó, que não gostava de ser tratada como tal, era um “vote-me a sua bênção mãezinha”. Como as vidas eram muito difíceis em tudo, o pai tinha a função de “caçar”, isto é, ir ganhar a vida para sustentar a família, para o que era necessário trabalhar de sol a sol. Os filhos de lavrador (caseiro), desde tenra idade eram “mão de obra barata”. Por isso se “faziam” muitos filhos. Trabalhavam muito para além do que a sua idade aconselharia, quando ninguém pensava sequer se era legal ou ilegal. E o que se passava com os filhos dos lavradores, passava-se com os filhos de todos os outros. Assim, não havia tempo, disposição nem o hábito de manifestações de afeto em casa através do abraço ou beijo entre homem e mulher e destes com os filhos, quanto mais em público. Era impensável porque “parecia mal”. Porque os sentimentos “não precisavam de ser demonstrados”. Daí haver um pudor cultural enorme, nas palavras, nos gestos, na distância, no respeito. Era bem? Mal? Não é justo julgar à luz dos conceitos de hoje, comportamentos de há setenta anos.

Mas nem é preciso regressar à minha infância para ver as diferenças e sentir os condicionamentos culturais. Ainda há dias, em conversa franca, uma senhora com pouco mais de metade da minha idade me confessava que, estando casada há quinze anos, só há dois foi capaz de dar a mão ao marido. E disse mais. Que foi quase acidental pois, ao andar lado a lado, as suas mãos tocaram-se por acaso e naturalmente agarraram-se. E sentiu-se muito bem. Porque foi que durante vinte e oito anos de namorados e de casados não foram capazes de o fazer, como seria normal? Reconhece que foi o condicionamento resultante da educação familiar, pelo “parece mal”, pelos olhares dos outros que dizem “não podes”, pela limitação que no subconsciente dizia “não” e impedia manifestações de afeto entre pessoas, o que hoje encaramos com naturalidade.

Quanto vale um abraço de conforto, solidariedade, amizade, amor ou simples cumprimento? “Não tem preço”, dizemos nós aqui e agora. Se perguntasse outrora, a resposta talvez fosse: “Tem valor”? Dizem que precisamos de oito abraços por dia para viver melhor e com mais saúde. É caso para nos interrogarmos porque não vivemos melhor se é “tanto ganho por tão baixo custo”? Porque não o fazemos mais? Sabe-se que o abraço melhora o estado de espírito, o humor e o grau de felicidade, sendo mesmo recomendado como terapia. E como os carinhos dos pais permanecem gravados e são lembrados sempre que recebemos um abraço. É que ele acalma, entusiasma, estimula e descontrai, porque foi feito para exprimir o que as palavras não conseguem dizer. Há muita gente a reconhecer que “o melhor lugar para se morar é na ternura de um abraço”. Se soubéssemos o quanto um abraço na hora certa pode resolver …

Pois a memória leva-me lá atrás, àquele tempo de abraços e beijos raros, aliás, de ausência deles. E, apesar disso, não sei dizer se muito valiosos. Mais ainda, como todas as manifestações de carinho e amor, eventualmente restritas ao silêncio e descrição do quarto do casal, longe dos olhares críticos e de “juízes” pouco condescendentes. Se é que havia algo parecido com “carinho e amor”. Não posso esquecer as imagens de telenovelas do “país irmão”, quando o coronel dá ordens à sua mulher: “Dona Branca logo se apronte, que eu vou lhe usar esta noite”. E o que é que isto tem a ver connosco? Nada, porque aqui não havia “coronéis”. E tudo, porque se dizia ou fazia mais ou menos o mesmo, “usando outras palavras”. É que as manifestações de afeto não faziam parte da vida de então. Na realidade, quase só aconteciam quando o “predador” queria apanhar uma “presa”, sendo usadas por ele como “argumento”, quando não “armadilha”. 

O condicionamento que a sociedade fazia às manifestações de afeto era múltiplo. Relembro que as próprias autoridades funcionavam como “polícia de costumes”, atuando sempre que, no seu entender, estivesse em causa a “moral pública”. Assim, eram proibidas todas e quaisquer “manifestações públicas de carinho” porque ofendiam a moral. E sei do que falo, já que também fui um dos interpelados pela polícia no parque do Palácio de Cristal só porque “estava demasiado perto de uma jovem”. Somente isso. Sem tirar “proveito” nenhum, fui repreendido por aquele polícia com ar “didático” e paternal. E tive sorte de não ter ido parar à esquadra …

Neste tempo de liberdade, as autoridades saíram deste filme e tudo (ou quase) passou a ser permitido, seja qual for o espaço público que se use para o efeito. Do abraço ao beijo, do cumprimento de mão ao afago, quando não ir além do que o sentido do pudor recomendaria, tudo é olhado com alguma naturalidade e aceite pela sociedade como normal. Mesmo os maiores absurdos …

Demonstrar afeto é vital para a convivência saudável de qualquer sociedade e foi uma das grandes conquistas da nossa evolução social. E posso falar disso, porque assisti ao “antes” e ao “depois” do quebrar de preconceitos e medo, e à libertação das manifestações de afeto, sejam emoções ou sentimentos. E não tenhamos dúvidas de que, quando o afeto é “real”, as “manifestações” são importantes para um desenvolvimento saudável … 

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