Hoje estive a rever imagens da Festa Grande de Lousada, maior, cada ano “mais Grande”. Há quem a denomine de “Festas Grandes” e ainda quem lhe chame de “Grandiosas”. Ora, apesar de decorrer ao longo de vários dias – e este ano foram seis – continua a ser uma só festa em honra do Senhor dos Aflitos e não várias (embora pareça). E faz todo o sentido o “Festa Grande”, porque é a maior do concelho, o corolário de todas as que se realizam em cada freguesia em honra do seu santo padroeiro. E é por ter esse sentido concelhio que o contributo é de todas as freguesias e não só das da vila de Lousada. É desse nome que me lembro quando procuro nos arquivos da memória as lembranças pessoais mais antigas da Festa Grande. E já lá vão uns anitos …
Entre as primeiras memórias está o sábado com a tradicional feira de gado, o rufar dos bombos e a dança dos “gigantones e cabeçudos”, os vendedores da “banha da cobra” com promessas de curar todos os males, propagandistas a atirar pentes ao povo para captar a atenção, negociantes de gado armados de varapau para o que desse e viesse, as filhas dos lavradores, coradas e de cordão de ouro ao pescoço à caça de namorado, os carteiristas e jogadores da “vermelhinha” que vinham dum concelho vizinho para “aliviar” carteiras, a garotada de olhos postos nos pequenos brinquedos artesanais em madeira. E no domingo, a missa de festa com o pregador empolgado no púlpito, a procissão ao fim da tarde e o ajoelhar quando passava o Senhor e depois o piquenique em família junto aos lavadoiros públicos. E já à noite, a banda de música, as tigelinhas a iluminar o monte do Senhor dos Aflitos, as barracas de comes e bebes com pipas de vinho e iscas de bacalhau servidas em grandes mesas de “bancos corridos”. Para fechar, a vaca de fogo que via cheio de medo dentro do carro do meu pai em plena avenida.
Anos mais tarde falaram-me de “uma mulher da vida” que numa noite acalmou a “tensão” de uns quantos homens entre o milho dos campos lá atrás do monte, usando como lema “cu no chão, dinheiro na mão”. Dizia quem por lá andou que o resultado da noitada foi de quarenta escudos … sendo que cada “cliente” pagava uma “coroa”, ou seja, cinco tostões ou, para quem não sabe, meio escudo. É só fazer as contas …
De ano para ano, o entusiasmo das comissões organizadoras fez com que a Festa crescesse em importância, grandeza e entretenimento para públicos diversos, embora nos últimos tempos muito centrada no negócio do álcool para gente nova, uma forma de financiamento da organização sem ter em conta as consequências. Mas, como dizia alguém envolvido nessas andanças, “é o preço a pagar pelo dinheiro”.
Agora, fruto das circunstâncias da vida, nos dias de festa fico em casa e só digo “abençoado seja o Monte do Loreto”. É que ele interpõe-se entre a minha casa e a zona onde decorrem os festejos, fazendo com que cá dentro não ouça nada do que se passa no arraial. É como se vivesse noutro mundo. Somente quando rebentam os foguetes, muito especialmente as bombas e os morteiros, sim. Chega o incómodo do barulho, visível no comportamento da minha cadela ao dar sinais de agitação, metendo-se debaixo da cadeira. Então, ouço os estrondos, embora amortecidos pelo monte abençoado.
Saí duas vezes um pouco antes da meia noite, em ocasiões em que prometi à Luísa ir buscar as tradicionais farturas. Aproveitei para dar uma volta rápida pelos locais mais movimentados do arraial, a forma simples de “apalpar o pulso” à Festa. Como já é habitual, passei pelas barracas de “artesanato africano” feito à máquina na China ou num barracão de Alcabideche, mas vendido por nativos negros vestidos com roupas coloridas para dar credibilidade à “origem controlada”. Também vi trabalhos de outras bandas, sinal de que somos uma boa “sociedade inclusiva”, abraçando tudo e todos. Curiosamente, sendo um ajuntamento onde se promove a venda de “artesanato”, estranho não conseguir encontrar nenhuma barraca de artesanato local, nem sequer da região. As barracas de “comes e bebes” nada têm a ver com as de antigamente. Modernas e sofisticadas nalguns casos, oferecem uma grande variedade alimentar que vai do pão com chouriço meio artesanal às pizas e cachorros. É um facto comprovado que a Festa cresceu em tudo. Em área, diversões, barracas, concertos, iluminação, bêbados e outras estatísticas. Só diminuiu na média de idades dos “anestesiados”, pois se antigamente eram quase sempre “homens velhos enfrascados em verde tinto”, hoje são “adolescentes novos conservados em shots de álcool puro” ou quase. Conserva melhor … A “Família Armando” manteve o seu registo normal ao empanturrar-nos com farinha húmida frita, polvilhada com açúcar. E eu fui cliente duas vezes, fazendo da Luísa uma “vítima” inocente. É que, ao comer farturas e beber sumo, a farinha cresce e a barriga vai atrás e incha …
Apagaram-se as luzes da Festa Grande de Lousada deste ano e com elas o barulho da animação e dos foguetes, para descanso da minha cadela. Mas ficou um “ruído de fundo” que vai e vem, mas teima em continuar, provocado pela indefinição de qual vai ser a Comissão da Festa do próximo ano. Chegou a notícia pública e publicada de que há um grupo que se disponibilizou para o efeito. Mas, além disso, ouço rumores e conversas em surdina sobre reuniões, pressões, avanços e recuos, ingerências e ausências, que transpiram para a praça pública e em nada dignificam os atores. Não se podem esquecer que estamos a falar da “organização da Festa Grande em Honra do Senhor dos Aflitos” e não de um jogo de futebol de casados e solteiros ou de uma corrida ao galo. Por isso, o processo devia ser transparente, célere e digno do que está em causa para evitar especulações e sem se deixar inquinar pela politiquice, que não dignifica o que está em causa …
É caso para dizer “a César o que é de César, a Deus o que é de Deus”. Tal como se apagaram as luzes da Festa e o barulho dos morteiros, será bom que também desapareça esse “ruído” inútil e desnecessário que ficou …