Cuidar os outros. E quem cuida deles?

De enxada na mão, o senhor Albuquerque consumia os dias da sua reforma a agricultar no quintal da casa, entre hortaliças e flores. Naquela tarde, quando o filho mais velho o foi visitar, encontrou-o estendido junto à cancela, sem reação. Chamou de imediato o INEM e, a partir daí, a sua vida alterou-se radicalmente. O AVC provocou-lhe a perda total de movimentos do lado esquerdo e afetou a fala, audição e atividade cerebral. 

De um momento para o outro, passou de homem ativo a dependente de terceiros. Depois de estabilizado, o Hospital enviou-o para uma Unidade de Cuidados Continuados, onde viria a permanecer durante três meses. Apesar de alertada para tal, a família “acordou” para o problema no dia em que foi informada de que iria ter alta. “E agora?”, perguntaram os dez filhos reunidos em casa para decidir quem havia de tomar conta do pai. Mas, todos os olhares se fixaram na sua irmã viúva, como se ela tivesse a obrigação de tomar conta do pai. E houve até quem o verbalizasse: “O melhor é ficar em casa da Emília”, disse um deles, dando a entender que não era uma sugestão, mas uma decisão. Enquanto a Emília ficou calada no seu canto, todos os outros aprovaram a sugestão sem hesitar como quem se livra da peste, sem se preocuparem em saber o que pensava a sua irmã viúva. Como nenhum queria o “embrulho”, a decisão “só podia ser aquela”. Afinal, não era um problema, porque foi resolvido num instante. Mas não se esqueceram de nada? Nem de ninguém?

Se é de um momento para o outro que se passa de pessoa saudável a um ser mais ou menos dependente, também é em decisões como esta que se fica a ser “cuidador informal”. “Empurra-se o problema” quase sempre para uma irmã, muito especialmente se for solteira, viúva ou divorciada. “É a única que tem possibilidades de tomar conta do pai”, dizem os outros, como se ela não tivesse vida própria. Neste egoísmo sem pudor, muitas vezes até se “esquecem”, intencionalmente, de lhe assegurar o apoio financeiro, como se lhe coubesse também a ela essa obrigação. É assim que uma mulher recebe um “presente” para o qual não está preparada e que vai fazer dela em pouco tempo uma ruína física e psicológica. O AVC que deixa graves consequências, modifica a rotina da pessoa doente, mas também a de todos os que estão à sua volta. E, no caso em questão, sabe-se que nas primeiras semanas os irmãos até foram passando lá por casa, para ver como estava o pai. Mas, como ele não falava, não participava numa conversa por mais simples que fosse, era uma “chatice” ficar ali a olhar para ele, a “fazer figura de parvo”. Foi por isso, e por muito mais, que os outros filhos se “foram esquecendo” da existência do pai, entregue aos cuidados da irmã Emília. E ela, apesar de ter recebido o “presente” por empurrão dos irmãos sem sequer ter sido ouvida nem achada, dedicou-se ao pai a tempo inteiro, numa missão nada fácil que a foi consumindo física e psiquicamente. A sua vida pessoal acabou e deixou de ter tempo para si, para cuidar da sua saúde, do emprego, do lazer. Nenhum dos nove irmãos se lembrou sequer, que ela também tinha os mesmos direitos que eles, apesar de ser viúva. Mas só viram que estava disponível …

É verdade. Não se tem verdadeira noção do que é “tomar conta” e “cuidar” de alguém com incapacidade física ou mental durante dias, meses e anos, uns atrás dos outros, sem ter estado nessa situação. Só quem passa por isso fica a saber como é difícil e desgastante, de onde se sai arrasado, deprimido, pronto para ir ao psiquiatra ou para uma cura de sono. Não se tem vida pessoal porque se vive só para o outro, não se tem capacidade de reagir pois tem de se anular, não se tem saúde porque só se tem tempo para cuidar da saúde de outro.     

Hoje, todo aquele que presta assistência a uma pessoa dependente de ajuda para o seu dia a dia, sem qualquer remuneração, é tratado por “cuidador informal”, o nome que carrega sofrimento, esconde dramas e implica sacrifícios. Como se trata de uma atividade stressante, o seu prolongamento no tempo leva à sobrecarga do cuidador, provocando altos índices de depressão, sintomas de stress, uso de psicotrópicos e outras doenças associadas, sendo que esses efeitos negativos podem persistir em alguns mesmo depois da perda do paciente. O “cuidador informal” é a expressão de amor e carinho, em regra por familiar ou, às vezes, amigo Em princípio, está entregue a si próprio, ignorado pelo estado, abusado pela família, esquecido de que também é gente. 

A senhora Maria tem mais de oitenta anos e cuida de dois filhos com deficiência há mais de cinquenta anos, a tempo inteiro. Cinquenta anos é uma vida. Mas, pior que isso, naquelas circunstâncias é uma eternidade para quem está despida de si, para quem nunca se põe em primeiro lugar. E, como se essa vida difícil não bastasse, vive com a angústia cravada no peito ao ver que os anos que lhe restam já não serão muitos e interrogando-se: “Quem vai cuidar deles quando eu morrer”? Porque ninguém sabe cuidar deles como ela, conhecer-lhes as necessidades específicas como pôr a mão na cara dum deles para conseguir adormecer. “Como vai conseguir ele adormecer sem mim”, pergunta desesperada, sem conseguir uma resposta que a sossegue e lhe dê a tranquilidade e a paz de que tanto precisa no crepúsculo da sua existência.

Diz-se que são mais de 800.000, mas ninguém sabe. Há muita gente a cuidar do conjugue, dos pais, de filhos e outros familiares. Porque são muitos os dependentes que não conseguem cuidar de si próprios.

Foi a pensar nestes heróis anónimos, naqueles que abdicaram de si em favor do outro, em todos aqueles de quem o estado e a sociedade se demitiram, que a Misericórdia de Lousada lançou em este ano o CACI – Centro de Apoio ao Cuidador Informal, para saber quem são, quantos são no concelho de Lousada e quais são as suas necessidades e as respostas que possam atenuá-las. Sem ter a veleidade de sanar o problema, pretende-se conhecê-lo e estudá-lo para encontrar formas de ajudar esta gente, de que eu faço parte.

Sendo uma obra de grande dimensão, a Instituição quer estabelecer parcerias com todos aqueles que possam dar mais valia ao projeto e ser parte integrante da solução. Todos podemos colaborar, a começar por ajudar na identificação das pessoas que tomam conta de alguém em situação de dependência. É que nem sempre é fácil chegar a eles, muitas vezes ignorados, esquecidos ou até escondidos da família e vizinhos, como se fosse um crime desempenhar um papel tão nobre. Para causa tão importante e que sempre foi ignorada, há que ajudar na empreitada, porque a tarefa é imensa. Mas, como diz o pensador chinês Lao-Tsé, “uma longa caminhada começa com o primeiro passo”. E todos seremos poucos para o fim pretendido …

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