Receia que enjoem a “marmelada”…

A vida de há sessenta anos atrás era feita de privações, fome, frio, trabalho duro, quando havia. E necessidades. Havia muito pouco para ganhar, quase nada para distribuir, algum fruto para proteger. Havia fome de tudo, porque havia falta de tudo. Se faltava a broa (era o pão dos pobres, pois não havia “massa” para “moletes” nem sêmea), que era o mais elementar dos alimentos, muito mais difícil era ter acesso ao peixe, à carne, ao queijo, à manteiga e até à marmelada. Por falar em marmelada, em regra, fazia-se pouca por estas bandas, mesmo daquela em que está a pensar. Os marmeleiros, dispersos nas bordas dos campos e quase sempre junto aos regos de água, eram cultura marginal. Diria até que deles se aproveitavam mais as varas direitas e fortes para fazer os “paus de marmeleiro”, usados nas disputas do “jogo do pau” e para “aquecer” as costas dos incautos nas rixas de feira, como resultado de umas canecas de vinho a mais. Mas eram poucas as pessoas que faziam marmelada de marmelo para consumir em casa, até porque o açúcar (amarelo) era pouco para necessidades mais primárias. O meu tio vendia na loja marmelada em pequenas caixas de madeira, acessível só a alguns e, mesmo assim, às fatias. E, sendo natural que ainda esteja a pensar na “outra marmelada”, esses “marmelos” só se pressentiam pelo volume, de tão embrulhados em roupa. Nunca andavam à mostra. “Não faltava mais nada”, diriam as gentes dessa época. Nem dava para chegar perto, nem estavam assim à “mão de semear”. Eram mais sonhados que acariciados. E se a dona estivesse à conversa com um candidato a “cozinheiro ajudante” para fazer essa “doçura”, tal só acontecia à distância de três metros e com uma janela a separá-los, sendo certo e sabido que na janela ao lado e bem atenta às jogadas, estava a progenitora da moçoila, feita polícia de serviço. Não havia baldas. Nem sequer a “proprietária dos ditos”, por formação e educação, estava para aí virada. Até nas feiras de ano. Os lavradores iam com a família toda. Ele, mal chegava, ia direito à feira do gado para “apreçar” uma junta de bois de trabalho, enquanto a mulher e filhas percorriam os tendeiros para comprar um lenço da cabeça ou umas arrecadas no ourives. 

As filhas iam à frente, coradas das papas que comiam antes de sair de casa, todas aperaltadas e com o cordão de ouro sobre “eles”. À vista, só o cordão. E os “marmelos”? Nem vê-los. Só os volumes, bem embrulhados. Nada mais. Atrás, mas suficientemente perto para as controlar, ia a mãe, armada em guarda-costas. Os moços, de colete e chapéu, metiam conversa, mas não havia “avanços” para chegar “ao pé”. Só no dia a dia, em especial durante os trabalhos, surgiam as oportunidades. No campo, a segar erva, o “controle” era bem menos apertado. E aí, podia acontecer. 

Num desses dias, um garoto chegou a casa esbaforido e a gritar: “Oh mãe, o João das Quintãs estava a fazer “porcarias” com a nossa Mila “antr’omilho”. Houve consequências. A Mila não saiu de casa durante um mês. O João levou uma “coça” do pai com a correia dos bois e, apesar de ser jovem, teve de casar com a Mila, “sem tugir nem mugir”. E a criança nasceu “antes do tempo”. É que, “marmelada” a sério, só podia ser feita depois do “papel assinado” e mesmo assim, em bom recato. Em público, nem pensar. Já a Maria teve pior sorte. Também “engordou”. Quando os pais souberam da “maroteira”, puseram-na fora de casa, porque era “uma vergonha”, a desonra da família …

Hoje, na região, ainda se faz marmelada com marmelos que pendem do marmeleiro, se bem que a maior parte seja industrializada. Toda a gente sabe que é mais fácil “produzi-la” no supermercado. Dos outros “marmelos”, outrora quase “clandestinos”, já não há a preocupação de os manter fora dos olhares indiscretos dos mirones como segredo bem guardado. Pelo contrário, as modas mandam que sejam expostos (e bem), usados como arma de ataque e conquista, íman para atrair quem dê uma mão (ou duas) para fabricar o tal “produto”. São artigo para provocar a “concorrência”, com visual muitas vezes trabalhado “cirurgicamente”. Deve dizer-se que passaram a merecer um cuidado especial das donas, sendo sujeitos a tratamentos para melhorarem o “aspeto” e a “atitude”, devendo ser firmes e de “cabeça levantada”, às vezes “desafiantes” e “provocadores”. É que estão sujeitos todos os dias a serem “observados” e “avaliados”. Criou-se toda uma indústria de “suportes” especiais, diversificados, conforme as “necessidades” específicas de cada par, em tamanho, aproximação ou afastamento, maior ou menor elevação, para mostrar verdades ou criar ilusões e enganos. No mínimo, num “espírito humanitário” para “levantar os caídos” ou “dar vida aos mortos” … E a “marmelada” deixou de ser feita às escondidas, em recato, longe da vista e dos olhares gulosos dos “consumidores”. Saiu à rua, invadiu os espaços privados e até os públicos, “trabalhada” sem restrições, limites e inibições de local, tempo, presenças e preconceitos, como um direito de liberdade. Nem se sabe bem se às vezes é para “consumo próprio”, “exibicionismo” ou só “para inglês ver” …

Em termos gastronómicos, sempre ouvi dizer que, comer marmelada com queijo, sabe a casar. E ainda hoje há quem peça para sobremesa “um dueto” ou “Romeu e Julieta”, essa mistura de doce e amargo que dá gosto à vida.

Dizia-me um amigo que os seus filhos adolescentes, já andam fartos de bolos e doces e até já enjoaram a marmelada. Por isso, ao ver as facilidades que hoje têm para fazer da “outra marmelada”, podendo variar de “fruta” sempre que querem, ele anda muito preocupado e manifestou-me os seus receios. Tem um medo terrível que eles um dia destes também “enjoem” esse tipo de “marmelada” e queiram variar e experimentar “outras sobremesas”, menos ortodoxas e mais alternativas, mas para as quais ele não está nada mentalizado …

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