E se esquecer, atrapalhar o dia a dia?

A meio do jantar levantei-me, fui à cozinha, abri a porta do frigorífico e … fiquei ali parado, sem saber o que ia fazer. Deu-me uma “branca”, um apagão, tive um lapso de memória. “Mas o que é que eu queria?” pensava com os meus botões. Voltei à sala, sentei-me e só depois me lembrei do que ia buscar ao frigorífico. Será isto normal? Sou um caso único ou toca a todos? Diz quem sabe que é coisa que acontece a toda a gente, embora a uns mais do que a outros, havendo fatores que podem contribuir para que isso aconteça mais. E o principal, e mais comum, é a idade. Quantas vezes não vamos fazer uma pergunta a alguém e, só porque somos interrompidos no momento, esquecemos o que queríamos perguntar? Sob o stress de um exame, quantos alunos não bloquearam perante uma pergunta que sabiam e não são capazes de “dar mais uma para a caixa”?

Esquecimentos ocasionais fazem parte da vida, sendo certo que, com a idade, os “lapsos de memória” começam a ser mais frequentes. Não lembrar o nome de alguém, onde se deixaram as chaves do carro ou os óculos de sol, em regra mais não é do que o envelhecer normal do cérebro, até porque um cérebro de 80 anos não tem as capacidades de um de 20. Para me defender, tento usar o sistema da organização pessoal. Coloco as chaves do carro e da casa sempre no mesmo local, tal como os óculos, o telemóvel, o relógio e todos os outros objetos pessoais. E não são só os pequenos.

Algumas vezes no centro da vila dou comigo à procura do carro, pois não me lembro do local onde o estacionei. E ele nem é assim tão pequeno. Mas há sempre quem faça mais que a gente. Um conceituado advogado de Lousada um dia foi ao Porto e levou a esposa consigo. Depois de a deixar no centro a fazer compras, foi tratar do assunto profissional que o fizera ir à cidade. Ao fim da tarde regressou a Lousada e, quando chegou a casa, perguntou ao filho: “Onde está a tua mãe”? “A mãe não foi consigo ao Porto?”, contrapôs o rapaz. “Ei, que me esqueci dela” …

Com o passar dos anos, aumentam os esquecimentos, a demora em aprender coisas novas. Se tenho muitas recordações do passado, não posso deixar de reconhecer que muitas outras já se varreram para as profundezas do cérebro onde não sei como as “desenterrar”. E ainda bem que esqueci certas coisas … até deu jeito. Aliás, costuma-se dizer que ter péssima memória pode ser divertido, pois usufrui-se diversas vezes das mesmas coisas, como se fosse a primeira vez. E convém, se não se quer ser agradecido, quando se não pretende pagar dívidas e até para não sofrer de saudades. A questão passa a ser preocupante quando os esquecimentos começam por atrapalhar o dia a dia de cada um, quando não se consegue ir de casa ao supermercado ou ser capaz de regressar, de lembrar como se tira um café, se frita um ovo ou se corta a barba. Daí que se conte a história de três irmãs com 80, 83 e 85 anos de idade que viviam juntas e se ajudavam. Ora, uma delas foi tomar banho e, quando estava com um pé dentro e outro fora da banheira, gritou: “Meninas, alguma de vocês sabe-me dizer se eu estava a entrar ou a sair da banheira”? Outra das irmãs ouviu-a chamar, começou a subir a escadaria, parou de repente e perguntou: “Sabem-me dizer se eu ia a subir ou a descer as escadas”? A irmã mais velha estava sentada na sala. Ao ouvi-las, abanou com a cabeça e disse: “Cruzes, estão mesmo velhas e cada vez piores”. E, batendo três vezes na mesa, disse: “Ainda bem que não estou tão mal como vocês. Eu já vos ajudo, mas antes tenho de ir atender à porta que alguém está a bater” …

No final da minha adolescência tive um gravador de fita, onde gravei a música que estava “na berra”. Com o uso e o desgaste, foi perdendo capacidades, tanto de gravação como de reprodução. Julgo que com a memória é algo semelhante e há quem ache que não se está a fazer tudo o que se deve para investigar doenças que a afetam, ao contrário de outras áreas. Foi a pensar nisso que o médico brasileiro Drauzio Varella comprovou que o mundo investe cinco vezes mais dinheiro em estímulos para a sexualidade masculina e em silicone para a beleza feminina do que no estudo e descoberta da cura da doença de Alzheimer.

Por essa razão, o médico profetizou: “Daqui a alguns anos, teremos velhas de seios grandes e firmes e velhos com “paus” duros, mas nenhum deles se lembrará para que servem”.

Tudo isto para dizer o quê? Que, graças aos avanços constantes da medicina e de um conjunto de outros fatores, passamos a viver mais tempo, a “durar mais”, embora nem sempre com a qualidade de vida mínima que seria desejável. É certo que, nesse aumento da esperança de vida, não se prolonga a juventude. Prolonga-se a velhice, muitas vezes num “arrastar” penoso, com doenças crónicas e debilitantes, entre as quais está a “doença de Alzheimer”. Já são muitos os idosos com incapacidade e demências, sendo esse acréscimo galopante bem evidente nas listas de espera dos lares institucionais que, em regra, foram construídos a pensar nos utentes autónomos. Já lhes basta os que ali acabam por ficar nessa situação.

Pessoas com dependências graves e demências são sempre um problema para as famílias, sendo evidente que muitas delas não têm quaisquer condições para os manterem em casa. Nem físicas, nem económicas, nem de vida. Temos de compreender que não é legítimo exigir-se que o façam, porque é obrigá-los a “carregar uma cruz” demasiado pesada. E será bom que tenhamos noção dessa realidade e não atiremos cuspe para o ar, porque nos pode cair em cima. Os alojamentos institucionais são muito poucos para tão grave problema e nada se tem feito de há muitos anos a esta parte. Sendo estes doentes uma responsabilidade do estado, cabe aos políticos com funções governativas dar respostas urgentes a problema tão grave, em vez de “assobiarem para o lado” ou esperar que o doente, no vai e vem das viagens de casa para o hospital e do hospital para casa, morra pelo caminho e passe a ser um problema a menos …

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