Encontro do presente com o passado

Hoje fui a Macieira, a minha aldeia natal, visitar alguns familiares e aproveitei para rever também condiscípulos, vizinhos, amigos e até outros conhecidos de outrora, do tempo em que aquela era a minha casa diária. Como não podia deixar de ser, comecei pela família, num reencontro sempre emotivo em que às vezes não consigo conter as lágrimas. “Estar com os meus” traz-me sempre muitas recordações, memórias, lembranças de vida comum, mas sobretudo o sentimento de pertença. E “falei-lhes” muito, apesar de permanecerem quietos, deitados e num “silêncio sepulcral”, pelos sete palmos de terra que nos separavam.

Os meus irmãos Álvaro e António, roubados desta vida de forma tão abrupta e instantânea como quem desliga a luz no interruptor, sem tempo para despedidas, para dizer um “adeus”, “até breve” ou sequer um aceno, permanecem jovens de vinte e três anos e quase trinta e dois, na memória, no coração e nas fotografias da pedra lapidar. Não vão envelhecer nunca, nem ganhar rugas, cabelos brancos. Não singrarão nas suas carreiras já iniciadas, em trilhos que pareciam seguros e firmes. Não chegarão a formar novas famílias, a ter filhos e netos. Só escaparam de aturar a mulher. Qualquer que fosse. “Falei-lhes” disso e, sobretudo, da grande falta que me fizeram ao longo destas mais de quatro décadas, talvez pelo meu egoísmo.

Na mesma “morada” está o meu pai que pouco lhes sobreviveu. Teve um fim penoso e com muito sofrimento. Os diabetes não o deixaram conhecer o Luís, o seu segundo neto. Ou terá sido o Luís que não chegou a tempo? Não chegou aos sessenta anos, muito menos à idade da reforma, agora mais distante. Ficou-se pelos cinquenta e seis anos, com boa apresentação, a imagem do meu Gregory Peck preferido. E assim permanecerá na minha recordação. “Falei-lhe” das viagens que fizemos em família, dos meus enjoos numa estrada cheia de curvas lá para os lados de S. Pedro do Sul que o obrigaram a parar algumas vezes, da companhia que me fez na primeira viagem a Nova Iorque. E a sua última, pois partiu já lá vão quarenta. Muito cedo para perder o seu conselho, o seu aviso, a sua orientação. Ficou ao lado dos pais: do meu avô António, de que pouco me lembro e da “mãezinha”, a mãe dele que nunca quis ser tratada por avó. Era uma comerciante nata e, tendo levado a vida a percorrer as feiras da região, não deixou de comprar e vender o que calhava pelos caminhos da aldeia quando a saúde e a idade já a tinham “aposentado” das outras andanças. Fui seu “motorista” durante as férias de estudante para as feiras de Fafe, Vizela, Amarante e Felgueiras, ao volante do enorme carro americano Dodge, carregado de mercadoria e ouvindo sempre as histórias do que acontecera na próxima curva, com o “ali despistou-se o Joaquim”, “acolá rebentou um pneu ao sr. João e esbarrou-se naquela árvore”, num alerta permanente à minha condução.

“Vi” o tio Peixoto, que chegou a ser agente da autoridade para depois se ocupar da “loja” ou “benda”, como chamavam então ao misto de mercearia e tasca. Pelos Santos Populares fazia sempre uma “cascata” junto da “loja” ao seu santo padroeiro e mobilizava a catraiada para pedir “um tostãozinho para o S. João” aos poucos que ali passavam. Tornou-se “santeiro”, escultor de santos em madeira com um simples canivete e ainda conservo como relíquia preciosa uma imagem de S. José que me ofereceu. Ali também está a tia Miquinhas, mãe sempre presente de uma mão cheia de filhos, muito tranquila e doce. Percorri todo o espaço e revi velhos amigos. O Zé, da Armindinha, conhecido como Zé Desportista por gostar da bola, meu condiscípulo e amigo. O Domingos Passeira, que regularmente ia a casa dos meus pais para nos cortar o cabelo. O senhor Cunha da Quinta de S. João Velho, de rosto magro e tostado pelo sol. Na memória, vejo-o a amarrar o porco à “cabeceira” do carro de bois e espetar-lhe um “facalhão”. Eu gostava de ajudar a chamuscar os pelos do porco com um molho de palha “centeia” a arder e esfregar depois a pele com pedra e água. Logo que podia, arranjava-nos uma febra que íamos a correr grelhar na chapa quente do fogão. Revi o senhor Marques e a Adelinha, o sr. Cunha e o Fernando da Rosinha, pedreiros de profissão, tendo este procurado uma vida melhor por terras de França com a família. E vi ainda lá os “representantes” de gerações recentes. Nunca chegarão a velhos … Enfim, a geração anterior já lá está quase toda e uma boa parte dos do meu tempo já “foram andando”. Por isso, devo dar graças a Deus.

O cemitério é um lugar especial sobre o qual se criaram mitos, medos e fantasmas, mas onde deveríamos ir com regularidade, no encontro do presente com o passado, para tomarmos consciência de qual será o nosso futuro. Como a morte é um nivelador implacável, ali todos chegam iguais e ninguém é mais do que ninguém. Nenhum é mais importante do que o outro, mais poderoso, arrogante, bonito ou feio, rico ou pobre. Todos lá chegam despidos de “teres e haveres”. Só existe o “Ser”, porque deixaram de ter o que quer que fosse. Fora do portal, ficou o poder, a vaidade, a arrogância, a ganância, a avidez, além dos bens materiais, resultado de uma vida cheia de trabalhos, habilidades, canseiras, ganhos lícitos ou mera exploração de outros. Não passa um cêntimo sequer para pagar a “portagem” de uma vida para a outra. Por isso, o cemitério deveria ser um simples parque relvado onde todos seriam colocados em igualdade de “instalações”, com uma simples cruz para “ostentar” (para aqueles que creem Nele) e uma pequena lápide, sem distinções, sem exibições ou competições. Mas não. Visitar o cemitério é verificar que muitos recusam aceitar o “nivelamento”. E tudo se faz ao contrário, numa estúpida competição pelo mausoléu mais imponente na “guerra” com o vizinho, o familiar.

Nalgumas vezes para “aliviar a consciência” da forma como se tratou o morto em vida ou para se querer mostrar “a dor que se não sente”. E os granitos polidos do Brasil ou Angola e os mármores de Estremoz ou Itália servem na perfeição para “atulhar” o cemitério, colocando homenagens sentidas ao lado de mentiras, sentimentos de dor a par de atos de hipocrisia, sinais de humildade de frente com uma feira de vaidades feita pedras luzidias que se atropelam umas às outras na ânsia de sobressaírem onde tudo deveria ser igual. Sem mentiras, sem vaidades, porque os mortos são todos iguais e já não mentem mais. As mulheres, em regra, são as mais dedicadas aos seus, as mais persistentes em não deixar esquecer. Limpam, lavam, enfeitam, iluminam e embelezam com flores e lamparinas o exterior da campa. E sentem a falta. Mais do que nós.

Pensando bem, talvez faça como os outros e arranje um monumento. Vou mandar construir uma “torre” no meu “talhão”, bem alta, a tocar o céu, dotada de elevador ultrassónico e com um motor de foguetão. Assim, quando “for desta para melhor”, enfiam-me nela e só tenho de entrar no ascensor, carregar no único botão que diz “Céu” e seguir direto ao Reino Celeste sem passar pelo Purgatório nem queimar os pelos do rabo no Inferno, “apeadeiros” que são um “atraso de vida”.

Sei que é difícil largarmos o “Ter”. Só alguns poucos o conseguem em vida. Mas a morte liberta-nos desse “peso” e impede-nos de continuar a ele agarrados. Por isso, sejamos capazes de compreender e aceitar esse desprendimento de bens, títulos, exibicionismos e vaidades para sermos verdadeiramente“livres” e iguais por natureza …

Leave a Reply