Um pinguim no meio de papagaios…

Em Portugal, associamos o luto à cor preta. Foram os nossos reis que começaram a adotar essa cor para fazer o luto, embora só no reinado de D. Manuel I se tenha generalizado no país. E, a partir daí, quando alguém se vestia de preto podia querer dizer que estava de luto, tal como na maior parte das culturas ocidentais, onde o vestir de negro podia revelar esses sentimentos de perda e respeito pela morte de alguém. Mas, noutras culturas, optaram por cores diferentes para manifestar esse sentimento. Assim, na África do Sul usam o vermelho para chorar a morte de alguém, mas na Tailândia é o roxo, na Índia o castanho ou branco, no Irão o azul e no Egipto o amarelo. Um amigo questionava-me, muito admirado: “O amarelo”? Porque não? A cor símbolo do luto é uma opção cultural, muito variada, mas as mais comuns são o branco nos países orientais e o preto nos países cristãos. Embora o luto não seja uma questão de cor da roupa a usar, de qualquer aspeto visual, de assumir um ar triste ou alegre, de manifestar o sentimento de perda do ente querido durante mais ou menos tempo. O luto é um estado de espírito, algo muito íntimo que depende e varia de pessoa para pessoa. É algo que se faz sozinho, de acordo com a forma de aceitação ou revolta pela perda, cabendo aos mais próximos dar espaço, tempo, compreensão e respeitar. Não é pelo facto de alguém se vestir de azul que sofre menos pela morte de uma pessoa do que outro que vive “fardado” de preto. Nada disso. Uma coisa é senti-lo e não o exibir e outra coisa é exibi-lo e não o sentir. Já nem falo do luto violento da Idade Média, em que os homens arrancavam cabelos e barbas e as mulheres arranhavam a cara …

A memória mais distante que possuo sobre manifestações de luto já tem várias décadas. Tinha quatro anos e ia a pé para a Carreira da Areia quando ouvi gritos estridentes e choro convulsivo. À entrada de uma casa térrea estavam várias mulheres vestidas de preto, de alto a baixo, com ar desesperado e aos gritos. A imagem foi tão forte que, a esta distância temporal, ainda hoje “vejo” aquela cena com gente a entrar e sair num movimento desusado, mas “pintado” de negro, a cor do nosso luto. Ainda me lembro das “carpideiras”, as mulheres que eram contratadas para chorar de forma “desalmada”, em prantos e lamentos continuados. Toda a família tinha de vestir-se de preto cerrado durante um certo tempo, variando esse tempo em função do grau de parentesco com o(a) falecido(a). Quanto ao viúvo(a), tinha o destino marcado: andar de preto no resto da sua vida.

No funeral vestia-se de forma formal – homem com fato e gravata e mulher de vestido – por norma em preto ou, quando muito, de cor escura. Não havia exceções, nem mesmo nas crianças. Até os velórios, que “atravessavam” a noite na casa da família com broa e aguardente a acompanhar, impunham vestes conservadoras. Este ritual na cor da noite tinha um aspeto positivo: toda a gente sabia como se devia vestir nessas ocasiões …

Lembrei-me disto porque nos últimos tempos, sempre que vou a um funeral fico na dúvida sobre o que devo usar. E há dias, em conversa com um amigo, conservador nos costumes e tradições, dizia-me que, nalguns deles dá consigo a olhar à volta, sentindo-se uma espécie de “ave rara” por estar em contraciclo com a maioria dos participantes. E que, como vai de fato ou calça e casaco clássicos, camisa e gravata, os outros “convivas” devem perguntar: “Este vem armado em quê”? Às vezes ainda aparecem outros “encasacados”, mas em regra, faz parte da minoria. Na realidade, hoje as roupas são muito variadas no funeral, indo do clássico ao informal de calça e camisa, quando não com roupa desportiva de qualquer cor. Até se chega a ver gente com calças de ganga “convenientemente rasgadas” conforme os ditames da moda, além de um ou outro vestido com decote ousado o que, no meu ponto de vista, até está correto, pois pode ajudar a “levantar o morto”. Penso que cada um é livre de se vestir da forma que entende e que não é isso que define o sentimento de perda, o respeito, o pesar e o luto por quem partiu. Já lá vai o tempo da “viúva negra”. Deu lugar à “viúva alegre”. Mais do que na cor da roupa ou no estilo, no funeral, a cerimónia onde nos despedimos de um familiar ou amigo com um “até breve”, o que importa é respeitar o momento e, especialmente, quem “partiu”. Esse amigo dizia-me que se está a acabar com as tradições e a quebrar regras sociais. E esta é uma delas.

E daí não ficar surpreendido que, um dia destes, a família do morto contrate barracas de cerveja como existem nas Festas e tenha “bar aberto” acompanhado de “música tecno” com batida forte, onde se possam “afogar” mágoas, “anestesiar” a dor da perda e arranjar “speed” para animar o momento. Pensando bem, seria uma boa solução para atrair “clientela” jovem que, sempre que pode, evita estas cerimónias.  Só o morto não poderá “enfrascar-se”, se bem que não viria nenhum mal ao mundo, pois não tem de “soprar ao balão” na última viagem e até seria excelente para a sua “saúde”, já que o álcool é excecional a conservar corpos … Tanto em África como num país europeu, já vi algo de semelhante, onde a morte é celebrada com festa, alegria e álcool. Muito álcool. Se pensarmos que quando morrermos deixamos este mundo de sofrimento e vamos para o paraíso celeste, porque havemos de chorar em vez de celebrar? Porque temos de ficar tristes quando devíamos alegrar-nos? Ou será puro egoísmo?

Já são poucos e, em regra, mais velhos, aqueles que veem no funeral um momento solene que é preciso respeitar. E que, na solenidade desse momento único, se impõe roupa escura e conservadora, tal como num casamento ou noutra cerimónia similar. E argumenta-se que, se as pessoas se vestem para um casamento com roupa formal, clássica, apesar de alegre, celebrando uma “união passageira” para “viagem” de períodos cada vez mais curtos, porque não devem vestir-se formalmente na “cerimónia de despedida” de alguém que também vai fazer uma “viagem”, a “última”, mas que não tem retorno? Será por no casamento, que mais não é que uma “despedida de solteiro” dos noivos, se celebra a felicidade e a vida mesmo que se preveja de curta duração, enquanto no funeral, que é a “despedida” do morto, a única coisa que se pode celebrar é a certeza do “eterno descanso” e sabendo-se que é de duração “longa” e “para sempre”? Será porque os primeiros vão passar à “atividade plena”, apesar de esmorecer com o stress e a rotina, enquanto o segundo fica “sem atividade nenhuma” e a título definitivo?

Com todo isto, continuo “como o tolo no meio da ponte” quando me tenho de vestir para ir a um funeral. E, para acabar com esse grande “problema”, que deve ser só meu, das duas uma: Ou a Paula Bobone, professora de Imagem e Etiqueta “Vestimentária” e figura mediática da nossa praça, escreve um novo capítulo no seu “Dicionário da Etiqueta” destinado a “orientar-me” nesta matéria ou salvem-me o governo e o parlamento e ponham a casa em ordem “parindo” mais uma daquelas leis inúteis que não serve para coisa nenhuma, mas que venha “regular” matéria tão importante para a nossa felicidade. Senão, eu que até nem gosto de andar “engravatado”, um dia destes num qualquer funeral vou sentir-me como “pinguim solitário” no meio dum bando de “papagaios” …

Cá entre nós, será que o luto ainda tem cor?

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