Agora,sim, já há assunto. E vida…

Até que enfim”, dizem eles. “Já não era sem tempo”. É que as semanas haviam perdido a graça, os encontros com companheiros de trabalho ou amigos já não tinham assunto para conversa e faltava-lhes aquela adrenalina duma época. As mulheres desabafavam em desespero: “Eu já não aturo o meu marido. Bem lhe digo para ir até ao café falar com os amigos ou jogar as cartas e não adianta”. Mas, finalmente, acabou-se o sofrimento pela ausência. Voltou o “Futebol”. Acabou-se o tempo de férias, as semanas sem assunto e os fins de semana sem jogos. Já tudo voltou à normalidade. Começa-se a semana a ler e comentar os jornais desportivos, o jogo da nossa equipa, exaltando as vitórias, arranjando culpados para as derrotas. Os árbitros são corruptos, os adversários trapaceiros e nós fomos os melhores. Até quarta-feira fala-se do jogo que passou. Revive-se o passado. A partir do meio da semana já só se fala no próximo jogo, a espectativa do futuro. É no café e no tasco, no emprego e fora dele. Veem-se todos os programas televisivos dedicados à bola, com adeptos ferrenhos disfarçados de comentadores “encartados”, onde o mais sábio é o que nos defende. Sim porque, ao defender a nossa equipa, está a defender-nos a nós. Ganha-se ânimo quando se juntam as hostes, os correligionários, quando não se desanimam uns aos outros com “estamos sem ponta de lança” ou “com este treinador não vamos lá”. “Aferroam-se” os adeptos adversários para espantar medos, criar a ilusão de que já ganhamos.

Começou o campeonato, agora chamado de Liga, se bem que de liga não tem nada. Estão todos desligados, de costas voltadas. Mas a bola já rola e há assunto para as conversas de café. Os adeptos (dos três chamados de “grandes”), embora possam ver os jogos na televisão bem instalados em casa, com copo de cerveja na mão e o comando na outra para, no caso de começar a correr mal mudar de canal para não ver o desastre, sempre que podem preferem ir ao “templo” do clube, em “peregrinação” assistir no local ao “cerimonial” que é um jogo de futebol. Porque lá é que se vive com a adrenalina no máximo, no meio dos “crentes”, irmãos daquela “religião”, solidários tanto na alegria da vitória como no “melão” com que ficam se a “coisa” correr mal.

E não há nada como estar integrado em “comunhão” com aquela multidão de “fieis”, vivendo intensamente cada momento e participando no “coro” de gritos, insultos, incitamentos e apelos ao linchamento do árbitro. “Matem esse ladrão”, “és o maior”, “vai para…” e mandam-no ir ter com a mãe que não tem nada a ver com o jogo. Quando há um golo, parece que levaram uma picadela no traseiro em simultâneo, pois todo o mundo se levanta do lugar ao mesmo tempo e salta feito canguru, de braços no ar e punho cerrado. Abraça-se o vizinho que se não conhece, alarga-se o sorriso, agitam-se bandeiras, cachecóis e todo o tipo de adereços. No canto dos adeptos contrários reina um silêncio de morte, à espera da vingança. Quando o golo é da outra equipa, invertem-se as posições e o alegre vira triste, o silencioso eufórico e o herói bandido.

O árbitro, a eterna “viúva” de que ninguém gosta, já nem se veste de preto para não ser tão sinistro. Mal entra em campo recebe um coro de assobios como saudação. Contava-me um antigo árbitro que, para ficar imune aos insultos, antes de entrar em campo olhava os adeptos espalhados pelas bancadas e pensava para si: “Ena tanto filho da …” a partir daí, dizia ele, já tinham razões para lhe chamarem de tudo. Não sei qual é o gozo de andar de apito na boca, a correr o campo todo do princípio ao fim durante o tempo de jogo e nem sequer dar um chuto na bola. Mas é preciso gente para tudo, inclusive para bode expiatório dos adeptos. É nele que descarregam as suas frustrações em primeiro lugar. Por isso, um árbitro precisa de muito “poder de encaixe”…

Futebol e política sempre andaram de braço dado, porque se servem um do outro. Ambos têm um interesse comum: ganhar com o adepto, porque é este o palerma que os alimenta. O futebol sobrevive do seu contributo financeiro e os políticos do seu voto. Daí que se casem os interesses, sem concorrerem um com o outro. Chama-se “casamento perfeito”, que devia servir de “modelo” para outros casamentos …

O adepto vive da emoção, daquele sentimento único do “ganhamos” se bem que isso não passe de um carinho psicológico. Ele até acha que pertence à equipa. Daí o “nós ganhamos”. Contenta-se com pouco e nem repara que o futebol se tornou um negócio e uma das maiores indústrias mundiais, de que ele é um mero consumidor. Porém, os jogadores, treinadores, dirigentes de clubes, associações, federações e confederações nacionais e internacionais, empresários e todo um leque de empresas de interesses cruzados vivem da bolsa de valores que se gera em negócio de tamanha envergadura, nem sempre clara e transparente. Daí os “assaltos” e “apegos ao lugar” a que de vez em quando assistimos pelos lugares “maiores”, em espetáculos tristes e com pouca dignidade, de que nem sempre temos conhecimento.

Já lá vai o tempo em que o futebol era um prazer, uma diversão. Não esqueço os jogos que fazíamos no caminho de Recemonde depois de sairmos da escola, com uma bola feita de uma meia velha cheia de trapos ou folhelho. Uma dúzia de garotos acabavam suados, mas felizes, depois de dar uns quantos chutos na bola improvisada. Era só um jogo de futebol. Hoje já não é só um jogo de futebol …

E com o regresso do campeonato, ou melhor, da Liga, os adeptos voltam a ter jornais desportivos com matéria quanto baste para ler, programas televisivos para ver e rever se o seu clube ganhar (se o clube perder, esqueçam), informação preciosa para argumentar com amigos e colegas de trabalho. E ainda têm a possibilidade de estar em “celebrações” no estádio para “desopilar” e soltar o “animal” que há dentro de cada um. Liberta tensões acumuladas e é muito melhor que ir ao psiquiatra ou “descarregar” na mulher e no cão …

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