Os rostos que nunca se esquecem…

A infância marcou-me para a vida com imagens perenes e não me saem da memória as memórias desses primeiros anos. Nasci numa aldeia onde cresci, brinquei, vivi. Palmilhei-a e conheci-lhe os cantos como conhecia a palma da minha mão. Por isso, tenho alma de aldeão e quando morrer, recuso ficar em prateleira de jazigo porque quero que a terra me “coma” e possa ser alimento para continuar a viver nas asas dum inseto ou nas folhas de uma oliveira. Quem sabe? Dessa vida de inocência e felicidade, acabada quando me arregimentaram para cumprir serviço militar, guardo recordações como se de um álbum de fotografias se tratasse. E as que mais retenho na memória (e no coração) são de pessoas simples e rudes feitas pelo sol e chuva a que não se podiam furtar, pois não tinham mais do que um simples chapéu de palha ou um saco de sarapilheira para se proteger. Ainda hoje vejo os seus rostos, secos e queimados com a pele ressequida, marcas de sofrimento e trabalho duro, sinais de vida difícil e parco alimento. E são muitos. Nas primeiras páginas desse “álbum” estão os pedreiros. O João “Trola”, o Santos “Ervilha”, os irmãos Tónio e Fernando “da Rosinha” e tantos outros. Vejo-os agarrados ao pico e à marreta, a trabalhar pedras enormes de onde conseguiam “tirar” blocos de esquadria perfeita para encaixarem na parede duma casa que se ia elevando lentamente, quais peças de Lego em mão de criança. O granito era a sua companhia, o seu ganha-pão, a sua fonte de vida, quando não de morte. Vê-los a lidar com pedras de centenas de quilos à força de braço, sem ajuda de equipamentos mecânicos como se nada fosse, ainda hoje me impressiona. Traziam no rosto as vidas difíceis de uma profissão dura que o tempo foi amaciando, hoje facilitada pelas muitas máquinas de apoio que a tecnologia pôs ao seu serviço.

Também me marcaram a infância os lavradores das Quintas da minha aldeia e arredores, desde a “Quinta” de S. João Velho à “Quinta” de Talhos”, da “Quinta do Campo” à “Quinta” do Eido. Todos eles eram “caseiros, todos pagavam renda ao senhorio. Muito cara, pois às vezes sobejava-lhes muito pouco, especialmente em anos fracos e quando os senhorios não perdoavam. Eles obrigavam-se a entregar o vinho, o “milhão” e o feijão da renda, às vezes tirado à boca da família que se tinha de contentar com o que sobejava. E a vida ficava difícil, até porque a família era a sua mão de obra gratuita. Daí, ter muitos filhos não era mais do que uma necessidade, uma ajuda no trabalho.

O senhor Moura sempre foi velho aos meus olhos de criança. Nunca o conheci de outro jeito. Trabalhava à jorna, querendo isso dizer que o salário era incerto. Ninguém o chamava em dias de chuva ou quando os dias eram mais curtos. Como trabalhava de “sol a sol”, não “rendia” o mesmo. Por isso, era pior ser jornaleiro do que lavrador.

Aparecia de manhã ao nascer do sol com as calças de cotim remendadas e os pés enfiados nos tamancos. Minha mãe usava os seus serviços para plantar batatas e cebolo, tratar das vides no quintal, rachar cavacos e arrumá-los no barraco. Descansava um pouco para meter um cigarro “Fortes” no canto da boca e dar duas “puxadelas”, encostado ao cabo da enxada. Ou para comer uma côdea de pão, às vezes “duro como o raio que o parta”, dizia ele. E uma malga de água-pé ou um copito de bagaço, que bebia dum trago. Eu era o “ajudante” na plantação das batatas e do cebolo, dando um contributo reduzido desde os três anos de idade. Quando alguém lhe punha dúvidas sobre a utilidade do meu trabalho, “pregava-lhes nas bentas” o provérbio: “o trabalho do menino é pouco, mas quem não o aproveita é bem louco”. Nunca andava a correr, mas trabalhava certinho como o boi à volta da nora a tirar água. Ia almoçar a casa, que ficava ali perto, e comia uma grande malga de caldo e broa sentado no preguiceiro junto ao lar, onde ardia o lume que a mulher, a Aninhas Moura, ateava com lenha apanhada no monte. E apagou-se da vida, como se apagam os cigarros, o lume e as pegadas na areia em dia de chuva.

Era bom homem, trabalhador humilde que se fazia à vida nesses tempos difíceis. Tenho para com ele uma dívida muito grande enquanto meu “professor”, a quem devo algumas das melhores lições de vida. Com ele aprendi como usar a enxada, o jeito de rapar as ervas e metê-las ao rego, a levar a picola bem acima da cabeça para cavar a terra, a distribuir estrume no quintal com a forquilha, a pegar no machado, dar-lhe lanço e rachar roletes de eucalipto em cavacos, para além de alguns truques que não se ensinam nos livros, mas são importantes a quem cultiva a terra. Mostrou-me o valor da humildade e do trabalho e foi muito paciente e tolerante comigo, apesar de não saber ler nem escrever. Bem mais do que muitos outros ditos “professores” que encontrei ao longo da minha vida de aprendizagem, uma boa parte dela passada na escola e outra na vida profissional. Sim, porque quando se acaba um curso, seja ele qual for, engana-se quem pensa que já se sabe tudo. Quando se acaba, só se pode dizer: “estou preparado para aprender”.

É com gente como o senhor Moura, os pedreiros e caseiros lá da terra e muitas outras pessoas, que tenho uma elevada dívida. Uma dívida de gratidão, por terem sido mestres e mentores da minha formação como ser humano. É por isso que guardo os seus rostos numa galeria particular, entre os melhores tesouros que a vida me deu… Aqueles que não se compram nem se vendem. Porque não têm preço…

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