Participei recentemente num congresso durante dois dias, ouvindo alguns palestrantes com prazer, enquanto outros só me conseguiram embalar, até me porem a dormir. Valeram-me os companheiros de jornada, já avisados: Quando ressonava mais forte, davam-me uma cotovelada, suficiente para acalmar o ronco e evitar com isso que os outros “acordassem”. Nesses dois dias havia um homem no auditório vestido de jeans e t-shirt, que carregava cadeiras e mesas, regulava microfones, organizava o palco, uma espécie de “faz tudo”, humilde e discreto naquela multidão de gente engravatada. No segundo dia, à noite, o programa deu-nos um espetáculo nesse auditório. Talvez por já ter dormido o suficiente com a intervenção de alguns palestrantes, alinhei no sarau. De início tocaram dois grupos locais, que ouvi com muito agrado e depois entrou o “arrumador” com uma viola regional e a mesma roupa com que andara vestido durante o dia. Regulou o microfone e pensei que deveria estar a prepará-lo para o artista seguinte. Mas não. Sentou-se, pegou na viola, chegou o microfone para junto de si e anunciou: “Agora vai tocar o porteiro”. E daquela viola regional a que chamam “viola da terra” e que noutras regiões do país apelidam de “braguesa”, “dois corações” ou “campaniça”, retirou uma música dedilhada com um virtuosismo impressionante, que deixou toda a plateia extasiada. Só tocou três músicas, entremeadas por conversa bem humorada e inteligente, que arrancou enormes gargalhadas à plateia. Quando terminou, foi aplaudido de pé, com o pedido para continuar. Mas ele pediu desculpa e não tocou mais, porque o espetáculo tinha de prosseguir com o programa previsto, de que ele era o responsável.
No dia seguinte procurei-o. Andava a preparar o auditório para a sessão de encerramento, com a mesma simplicidade, ficando até surpreendido por o abordar. Conversamos um bocado e, se já a sua música e a veia humorística me tinham impressionado no dia anterior, a sua humildade e modéstia despidas de qualquer sombra de vedetismo, deixaram-me rendido ao homem e ao artista.
Luís Gil Bettencourt é o seu nome. Músico, compositor e produtor musical, que mantem uma atividade na organização de eventos culturais, é natural da Terceira, nos Açores. Descendente de família de músicos, começou aos seis anos a tocar e cantar para os militares americanos da base das Lajes. Viveu a adolescência nos Estados Unidos com os pais e nove irmãos, a maioria deles músicos e fez parte de uma banda que atingiu grande prestígio. Mas deixou a terra do tio Sam para regressar ao seu país e aos Açores e “puxar” pela cultura das ilhas que são a sua casa. E fez disso a sua missão.
Na sequência da nossa conversa e de contactos posteriores, atuou recentemente no Auditório de Lousada. E, se dúvidas houvesse sobre as suas reais capacidades, dissiparam-se por completo ao longo dum espetáculo que o público (onde me incluía) não queria que acabasse. Desde o momento da apresentação até à última canção, transportou os espectadores numa viagem musical que começou nas ilhas e atravessou o país, tendo ele sido o cicerone e o guia, levando-os do riso às lágrimas, do silêncio ao coro geral da sala, com mestria e inteligência, na simplicidade e humildade de um grande artista.
Para introduzir uma canção de embalar, falou da sua mãe e de como ela lha cantava quando era pequeno. “Nós somos dez irmãos, quase todos ligados à música. E temos a sorte de nos darmos muito bem, de estarmos juntos muitas vezes. A minha mãe morreu nos Estados Unidos. Nos últimos dias, já era a máquina que lhe suportava a vida. Não havendo mais esperança, a família reuniu-se e deliberou que a máquina devia ser desligada. Coube-me a mim essa honra. Então, com os filhos à volta da cama, no momento em que eu desligava a máquina, todos em coro cantamos-lhe esta canção de embalar”. Neste momento a maioria dos espectadores estava com um lágrima no canto do olho. E ele, imediatamente e para quebrar esse momento carregado de emoção, acrescentou: “E ainda hoje não sabemos se a minha mãe morreu por eu lhe ter desligado a máquina ou se foi por cantarmos tão desafinados”… E as pessoas passaram das lágrimas ao riso, levadas por um artista completo, senhor do palco e do público com quem interagiu plenamente.
O seu irmão mais novo a quem ensinou os primeiros acordes da viola, é já há alguns anos considerado um dos maiores guitarristas do mundo e dá pelo nome de Nuno Bettencourt. E ele, que teve tudo para ser consagrado também no mundo da música, abdicou de uma carreira para se dar aos Açores, mantendo laços de amizade com muitas estrelas mundiais da música, algumas das quais faz questão de levar à sua terra em dois mil e dezanove, num festival invulgar na Lagoa das Sete Cidades.
Voltou a Lousada como amigo. Quando lhe disse que os UHF iam atuar à noite e estavam nos testes de som, quis dar um abraço ao vocalista António Ribeiro, seu amigo pessoal. Fui com ele junto do palco no centro da Vila mas só lá estava o pessoal auxiliar a testar o som. Músicos, nenhum. Então foi junto do controle do som e tentou falar com um membro da equipa. Muito educadamente, perguntou pelos músicos mas só recebeu indiferença e má educação, de alguém que se julga “importante” por trabalhar com os UHF. Mas ele, com humildade, disse-lhe que gostava de cumprimentar o vocalista. A indiferença e cara de poucos amigos do “manager” continuou a ser a mesma. Ao fim de alguns minutos, quando viu que nada havia a fazer ali, pediu-lhe: “Já agora, faça-me um favor. Diga ao António Ribeiro que o Luís Bettencourt esteve cá e lhe deixa um abraço”. O homem que permanecera sentado e indiferente durante a conversa, levantou-se como que impelido por uma mola e deu um grito de surpresa: “Luís Bettencourt? Oh que grande honra vê-lo aqui”… E desfez-se em amabilidades, cumprimentos e elogios, numa manifestação de imbecilidade e subserviência, a contrastar com a arrogância e indiferença de momentos atrás.
Como a conversa já vai longa e para concluir, um primeiro conselho: Se encontrarem um imbecil como este, armado em gente importante, ignorem-no. E um outro, que nunca devem esquecer: Se tiverem a oportunidade de ir a um concerto do Luís Gil Bettencourt, agarrem-na com unhas e dentes, porque ele é excepcional, como músico e humorista. E como homem. Como diria o Fernando Mendes, irão ver “um artista que é um espetáculo”…