Nunca fui um “madrugador militante” e só em casos de extrema necessidade ou quando não tenho alternativa me submeto a esse suplício. Sim, porque é uma violência, muito especialmente para quem se deita quase à hora do galo cantar… Definitivamente, estou com os que dizem que só os tolos se levantam cedo. Os tolos e os necessitados. O homem não nasceu para acordar cedo, nasceu para acordar. Em lado nenhum está escrito que tem de ser cedo. Isso é só para os que dormem a correr… A natureza não nos criou com esse “defeito de fabrico”, é uma invenção da era industrial. E então, ter de acordar com o barulho estridente de um despertador enfurecido, é violência psicológica que mais parece uma tortura da Idade Média, deixando qualquer um traumatizado para o resto da vida. Para atenuar tal violência, já se desperta ao som da música preferida… que só o é, até se tornar a música do despertador. Todas as manhãs tenho muita vontade de acordar cedo mas, para ser sincero, a vontade de continuar a dormir é bem maior. Por isso, todos os dias luto comigo mesmo para saltar da cama para fora e, quando consigo, dou comigo a dormir em pé. É natural que, neste tempo em que se vive muito a noite e de noite, toda a gente desperta com uma grande vontade: De continuar a dormir. Até porque, o difícil não é o deitar tarde. Difícil, difícil, é acordar cedo. Quem comanda este mundo louco só devia autorizar o acordar sem ser ao compasso de horários, ao ritmo dos compromissos, dos toques do telefone, campainhas de rua ou de despertadores roufenhos, de ser cedo ou tarde, noite ou dia.
À medida que os anos passam, as coisas ficam mais complicadas para mim. Deito-me para recuperar forças e acordar renovado e fresco mas, na realidade, quando me levanto tenho o corpo moído, como se tivesse sido atropelado por um comboio. O que está errado? Só o facto de me ter levantado. Nada mais. Aliás, o meu corpo reage sempre negativamente a isso, pela manhã. Sem mais nem para quê, mal saio da cama desato a espirrar e só paro muito para além da meia dúzia de “Atchins”. Constipação? Nada disso. Trata-se de alergia pura e só pode ser ao “levantar”. Ou, quando muito, à “manhã”. Sim, alergia matinal, aos primeiros raios de sol, à luz do dia e tudo o mais que possa acontecer a essa hora.
Já foi tempo em que o Tónio Silva, vizinho dos meus pais e pedreiro de profissão, se levantava às cinco da manhã para ir a pé para o trabalho a quilómetros de distância, onde tinha de “pegar” ao nascer do sol. E só “arriava” depois do sol posto… para regressar a casa a pé. Aí, a “ditadura da miséria” impunha leis contra natura, como essa de ter de levantar cedo, quando o corpo pedia descanso. Como não havia televisão, o povo “deitava-se com as galinhas e, antes de adormecer, entretinha-se a fazer filhos. Era uma “ocupação” boa? Tão boa como outra qualquer. Daí haver “ninhadas grandes”…
Agora, não há nada disso. Vivemos (quase) todos agarrados à televisão que transmite toda a noite em “trezentos canais” diferentes, não deixando tempo para essa “outra distração”, pois até o cidadão mais enfezado tem de fazer uma ginástica do caraças com a mão para dominar o comando da TV, saltando de canal em canal. Claro que, assim, só pode ir para a cama às tantas da manhã, já sem físico nem paciência para “cambalhotas”. E depois, faz algum sentido ter de aguentar um despertador qualquer aos berros às sete ou antes? Não faltava mais nada.
Cá em casa já parti os despertadores todos à marretada, para não ficar qualquer fiozinho ligado, por mais pequeno que seja, que ainda permita chatearem-me a horas inconvenientes. Já não me conformo ao ser acordado por um despertador desafinado, quando não roufenho. Nem sequer pela Rádio Comercial… É que é muito difícil viver quando a gente se deita para dormir e, minutos depois, já é dia e hora de pôr o coirão fora da cama. Que culpa temos dos ponteiros do relógio andarem a grande velocidade quando estamos a dormir? Por isso, nas muitas vezes que acordamos de madrugada com vontade de fazer xixi, mantemo-nos no aconchego dos lençóis a lutar contra o “vou ou não vou” à casa de banho. E vamos aguentando na cama, divididos entre a “vontade” do xixi que não deixa dormir e o sono que não nos deixa sair da cama. Faz falta o velho “penico”…
Ninguém compreende os que defendem que nos devemos levantar cedo. Só se for para castigar o corpo ou para termos tempo de voltar para a cama… Esta coisa do sono é coisa séria. Um dia num Lar de Idosos (agora chamados de seniores ou “sessenta mais”), uma mulher gritava desalmadamente: “Ai, ai, ai…”. Aqueles gritos incomodavam qualquer um e a minha mulher, no seu habitual espírito de tentar ajudar, perguntou-lhe: “A senhora tem dores”? E a utente respondeu prontamente: “Tenho, tenho muitas dores”… “ E de que se queixa”, insistiu? E ela respondeu-lhe logo: “São dores de sono”…
O mundo evoluiu, há que reconhecê-lo. Se foi para melhor ou pior, não sei. Antigamente deitávamo-nos “com as galinhas” (isto é, cedo) e cedo nos levantávamos. Mas isso era antes… Agora, tiramos cursos de morcego, fazendo noitadas até às tantas da matina. E depois, ainda querem que se acordemos cedo… Mas o que é isso de “acordar cedo”? Às sete… da tarde? Ou tem de ser às cinco?
A Simone de Oliveira dizia numa entrevista que a pior coisa que lhe podia acontecer era ter de acordar e, quando se levantava de manhã (e para ela “manhã” era a partir do meio dia), sentia que “tinha cem anos ou mais”. Mas, à medida que o dia ia avançando, revivificava e rejuvenescia hora a hora, a tal ponto que, quando chegava à meia noite, era como se tivesse quarenta anos ou menos.
Nos últimos tempos a Luísa acorda quase sempre entre as sete e as oito horas da manhã e diz logo: “Quero ir embora”, que é como quem diz, “Quero levantar-me”. Bem enterro a cabeça na almofada, finjo que estou a ressonar ou digo que ainda não é dia, mas nada adianta. Tenho de a ajudar a levantar-se, com tudo o que isso implica… Mas pareço um zombie. E ela, apesar dos seus problemas de saúde, todos os dias se apercebe desse meu estado. E enquanto a estou a ajudar, no seu espírito solidário, diz-me sempre: “Estás cheio de sono. Vai dormir que eu levanto-me sozinha”… Vejam isto, até ela é a primeira a reconhecer que são horas impróprias para eu acordar. Por isso, meus amigos, deem-me uma ajuda e nunca me telefonem… antes do pôr do sol. Posso estar a dormir…