Há ocasiões em que precisamos de parar para avaliar o deve e haver da vida, o que temos em comparação com o que tivemos, o que somos e o que fomos. E agradecer, porque temos muito a agradecer. Para mim, hoje foi um desses dias. Tudo começou logo pela manhã quando dava o passeio matinal com a Diana. Recebi uma mensagem pelo telemóvel para tomar uma decisão sobre o restaurante e a ementa a servir no encontro de colegas de curso que vai acontecer ainda este mês em Coimbra. Por e-mail enviaram-me os dados. Era urgente. Parei, li, escolhi e dei a resposta. Assunto encerrado.
Então questionei-me: “E se isto acontecesse quando era miúdo”? Aquilo que ficou resolvido em cinco minutos demoraria mais de uma semana… a correr bem. Senão, vejamos: Não havia e-mail, nem mensagens, nem… telemóveis. Até telefones, muito poucos. A única forma de comunicar mais acessível era por carta ou postal, mas demorava uns dias para cá e outros para lá. Ir a Coimbra de propósito estava fora de causa pois era muito longe… Havia muito poucos carros, quase nada de transportes públicos a não ser o comboio do “tempo da outra senhora”. Por isso, este pequeno aparelho que (quase) toda a gente trás no bolso e que dá pelo nome de telemóvel (agora smartfone) é algo que em criança era inimaginável. Que me lembre, nem o próprio Júlio Verne os sonhou.
Mas não fiquei por aqui. Após o passeio, fui para a casa de banho e comecei por cortar a barba. Abri a torneira e jorrou água, quente ou fria, a gosto. Naquele outro tempo, quem tinha água em casa ao simples levantar de um manípulo? Ninguém. As mulheres se queriam água, iam à fonte de Talhos que ficava a uma certa distância, com um cântaro de barro que traziam à cabeça para casa. E dele iam tirando pouco a pouco até porque, quando acabasse, tinham de voltar à fonte, com chuva ou com sol. Mas hoje abro a torneira e a água jorra em abundância dia e noite sem parar. Para ensaboar a cara, o pincel de cerdas de porco era bem esfregado em sabão macaco até fazer espuma, enquanto o corte ficava para a navalha. Só mais tarde apareceram as primeiras lâminas de barbear, muito simples. Hoje há cremes de barba e espuma de várias qualidades, múltiplas “gillettes” e máquinas de barbear, cada vez mais sofisticadas. Depois fui tomar banho, de água morna, à temperatura escolhida em torneira termostática. Um luxo que nem sequer entrava nos meus sonhos de criança… Naquele tempo era num alguidar de barro (quem tinha alguidar), atirando chapadas de água para o corpo…
E a eletricidade? Uma comodidade de hoje que se tornou um direito de todos. Carrega-se no interruptor e a luz jorra em quantidade como se fosse dia. E a ela estão ligados múltiplos aparelhos que nos facilitam a vida e a tornam mais cómoda. No meu tempo de criança, quase todas as casas tinham luz… a petróleo, que se vendia na mercearia. Havia uns bonitos candeeiros com campânula de vidro, que se passeavam pela casa conforme nos deslocávamos. Algumas pessoas utilizavam os gasómetros a carboneto. As poucas casas com eletricidade, nem sempre a tinham. Falhava muito. Às vezes, durante dias seguidos, especialmente no inverno. E a potência baixava à noite, ao ponto das lâmpadas não iluminarem. Se faltasse, esperava-se um dia antes de perguntar se quando voltaria. Hoje, não se espera um minuto…
Cresci com a rádio porque… não havia televisão. E só existiam meia dúzia de rádios na aldeia. Hoje o rádio é mais companhia de viagem porque a televisão dominou-o, melhor, dominou-nos. E é um milagre pegarmos num comando confortavelmente instalados no sofá e vermos o mundo em direto e a cores, saltando de canal em canal, de programa em programa… com o simples carregar no botão.
Pus-me a pensar nas milhentas coisas que o ser humano criou nas últimas seis décadas e que foram inventadas com o objetivo de simplificarem a nossa vida e de a tornarem mais cómoda. E difícil é enumerar os eletrodomésticos e todos os outros equipamentos, os meios de transporte que são cada vez mais rápidos (e cada dia chegamos mais atrasados), os novos meios de comunicação, do telemóvel ao smartfone, do “tablet” às redes sociais, dos computadores à internet. A massificação do ensino e a evolução na medicina de que hoje usufruímos como um direito, a anos luz de distância do pouco que havia naquele tempo. E seria cansativo enumerar bens e serviços que fazem parte do nosso dia a dia, que outrora não passavam de miragens ou nem isso.
E ao lembrar-me de tudo isto, não deixo de pensar que nos tornamos dependentes de tantas coisas, sem as quais nos sentiríamos perdidos e incapazes de viver. Como seria a nossa reação se a água deixasse de correr nas torneiras e a eletricidade de dar vida às nossas casas durante um mês? Seria o colapso porque não estamos preparados para viver sem elas. Já as consideramos como “direitos adquiridos”. E a verdade é que, para além de aceitar a vida como ela é, devemos também não dar as coisas boas como garantidas… porque um dia podem deixar de sê-lo, por mais absurdo que isso nos pareça.
Ainda há poucos dias conheci dois homens que cavalgaram uma vida de milhões onde acediam a tudo o que o dinheiro podia comprar para, em muito pouco tempo, ficarem a viver das esmolas da segurança social e da sopa dos pobres. E pensavam eles que os milhões e a vida boa era um dado adquirido, para sempre… Tal como nós pensamos sobre um conjunto de bens e serviços a que hoje temos acesso e de que usufruímos displicentemente, como se fossem inesgotáveis e durassem até ao fim dos tempos. Mas não vão durar, a começar pelo acesso fácil à água e o direito ao desperdício… Por isso, para nosso bem, nunca demos nada por adquirido nem garantido…