Uma fossa e um poço sumidouro…

Andava na escola primária e, como os pais não tinham de nos levar à escola, a aldeia era o nosso recreio. Assim, conhecia bem a maioria das casas, quase todas muito pobres. Térreas em regra, com paredes exteriores em granito e cobertura em telha vã, quando não em colmo, e pavimento em terra batida. Para além da cozinha, escura, defumada e com a estrumeira à porta (para os despejos e as necessidades fisiológicas), havia uma ou duas divisões onde dormia a família, fosse qual fosse o número de pessoas do agregado familiar. Em suma, as condições de habitabilidade eram miseráveis e diziam bem da má qualidade de vida de então.

Só a partir dos anos sessenta foi possível melhorar as habitações, resultado do aumento de rendimento familiar, não só pela criação de indústrias como, e sobretudo, a partir do momento em que as mulheres começaram a trabalhar fora de casa. Cá em Lousada, José Dias foi o primeiro a abrir-lhes as portas do emprego na Estofex,. Já Hans Hisler, viria a ser o Homem com quem milhares de mulheres ficaram a ter uma dívida de gratidão pela sua entrada no mercado de trabalho, empregadas diretamente na Fabinter (mais conhecida por Kispo) de que era proprietário ou indiretamente através das muitas empresas que produziam para esta e em muitas outras que dela copiaram o conhecimento e tecnologia por ele trazidas para Portugal. Mas, o desenvolvimento da construção de novas habitações deu-se sobretudo a partir dos anos setenta e oitenta e a autoconstrução de moradias deu uma boa ajuda.

Muitos foram os trabalhadores que, depois de comprarem o terreno num primeiro esforço, se aventuraram à construção da “casita”, quase sempre aos fins de semana, arregimentando mão de obra voluntária entre familiares e amigos, muitas vezes num processo de troca de favores em que “hoje ajudas-me tu e amanhã ajudo-te eu”. Só se pagavam os materiais de construção e… os comes e bebes. O primeiro “lanço” era até preparar o rés do chão pois, provisoriamente, já dava para se meter lá dentro e deixar de pagar renda, economia essa que seria mais uma ajuda à sua conclusão. E muitas foram as moradias que se ficaram na primeira placa ao longo de anos e anos, à espera de dias melhores…

O João foi meu condiscípulo, amigo de infância e das malandragens. Fiz-lhe o projeto da casa quando ainda era um processo simples. Dei-lhe conselhos e orientações, apontei caminhos. E ele mal apanhou a licença, meteu mãos à obra. Ao fim de semana, inclusive ao domingo, era vê-lo sozinho ou acompanhado a “mourejar” na construção da sua casa, levantando paredes, chapando massa, preparando a cofragem… Também ali se “abrigou” logo que deitou a primeira placa e só volvidos alguns anos daria a obra por concluída. Foi uma alegria imensa, a realização de um sonho impossível… Mas chegou lá apesar de “ter passado as passas do Algarve”, “de ter comido o pão que o diabo amassou” porque, foram muitas as vezes que “teve de o tirar da boca para o ter para materiais”. Mas valera a pena. Agora tinha uma casa digna para a família, o seu palácio…

Um dia apareceu-me no escritório a pedir para lhe tratar “da vistoria da casa”, a sua forma de dizer que desejava requerer a licença de habitabilidade, coisa a que ninguém ligava. Tratei-lhe da papelada, assinou o requerimento e o pedido deu entrada na Câmara Municipal, ficando a aguardar a marcação do dia para a vistoria. Dias depois fui procurá-lo para saber se tinha construído a fossa séptica e o poço sumidouro obrigatórios. “Não, não construi”, respondeu-me. “Liguei os esgotos para uma mina desativada que atravessa o terreno. Não serve”? “Não. Então não te avisei de que tinhas de fazer fossa e poço sumidouro?”, respondi-lhe um pouco agastado. “E agora”? A pergunta ficou no ar. Conversamos um bocado à procura de uma solução, até porque a vistoria seria efetuada dois ou três dias depois.

No dia da vistoria só pensava nele e, mal esta acabou, o João veio a minha casa contar-me o “filme”: “Ao fim da manhã chegaram dois senhores de carro, um da Delegação de Saúde e outro da Câmara Municipal. Com os papéis na mão, quiseram ver a casa toda. No final, perguntaram-me onde tinha ligado os esgotos. Disse-lhes que estavam ligados à fossa, como manda o projeto. Pediram então para lhes mostrar a fossa e o poço sumidouro. Levei-os ao fundo do quintal enquanto lhes explicava que os tinha feito ali para ficarem a mais de vinte metros do poço da água e evitar contaminações. Como levei comigo pá e picareta, comecei a cavar no canto do quintal e fui-lhes dizendo que deixara as tampas enterradas cerca de meio metro para poder cultivar o terreno todo. Fui cavando, cavando e tirando a terra para o lado, até a picareta bater numa peça de betão. “Cá está a tampa da fossa”, e continuei a cavar para alargar o buraco. Às tantas, o representante da Delegação de Saúde disse: “Não vale a pena cavar mais. Já chega”. E deram meia volta. Informaram-me depois que a vistoria seria aprovada.

“Como é que em dois dias conseguiste fazer a fossa e o poço sumidouro”, perguntei-lhe meio desconfiado. “Eu não disse que construi a fossa, nem o poço. Não, não construi. Só tive tempo para enterrar lá duas tampas de betão. Foi nelas que eu bati com a picareta. Por baixo, não há mais nada. Nem poço, nem fossa”… “E como é que sabias que não te obrigavam a cavar mais, a teres de abrir a tampa e mostrar a fossa?”, disse eu. “Não sabia e arrisquei, pois ainda acredito na bondade das pessoas. E duvido que, em cem

pessoas, houvesse um único cara de pau que não confiasse”…

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