Foi a Teresa que me falou na história de vida desta senhora e eu quis conhecê-la e ouvir o relato pessoal. No final, pus o meu pensamento em Deus e agradeci-Lhe por me ter dado tanto e concedido uma família e uma vida “normal”. É que, por tudo o que ela passou, seria motivo suficiente para abater o mais forte, criar um revoltado da sociedade, senão mesmo um marginal do sistema. Ao falar-me do seu trajeto, tranquila mas com as lágrimas a quererem saltar-lhe dos olhos, bem lá dentro em sofrimento, encontrei uma mulher forte que está de bem consigo e com o círculo familiar que a rodeia, o castelo onde se refugiou para se proteger de um mundo que lhe foi hostil e onde só recebeu amor desinteressado e puro, dos animais. Dos ditos seres humanos (quase) só tem péssimas recordações: Abandonada várias vezes por quem tinha a obrigação de lhe dar amor, explorada pelos que deveriam protegê-la, agredida física e emocionalmente por quem dizia amá-la, reprimida, abusada, ofendida, sofreu de tudo o que de mau um ser humano pode fazer a outro. Com isso, tornou-se adulta à força, prematuramente, vítima das circunstâncias.
Nasceu no sul de Angola, onde viviam os pais, mas não tem qualquer recordação pois fugiu da guerra ao colo da mãe e com a irmã quando tinha dezoito meses, logo após a independência, tendo o pai ficado. Mas, mal chegaram ao Porto, a mãe abandonou-as num colégio de crianças órfãs e foi à vida, para a qual elas seriam um empecilho. Ora, quando o pai regressou a Portugal, viu-se sem mulher, sem filhas e sem sinal delas. Mas não desistiu e foi procurando até que o acaso (ou talvez não) fez com que, cerca de um ano depois, as identificasse pelo cabelo no meio da criançada do colégio, quando estava sentado num café do Porto. Confirmaria essa identificação ao reconhecer a letra da mulher no bilhete que deixara junto das crianças no dia em que as abandonou. No entanto, por razões burocráticas, só voltaria a ficar à sua guarda aos quatro anos. Como ficou feliz por receber o amor do pai extremoso, apesar da madrasta… Mas o sol na sua vida seria de pouca dura. O pai faleceu tinha ela sete anos e sobrou-lhe a madrasta, que “não a largou de mão” a favor do tio, por ver nela a herdeira legítima e uma oportunidade de “herdar” também, mesmo sem direito… E, tal como as madrastas más das histórias, fez-lhe a vida negra. Cedo a pôs a trabalhar numa fábrica de confecções mal completara doze anos, para lhe ficar com o salário por inteiro. Quando três anos depois a patroa lhe deu cinco contos como compensação pelos subsídios de férias e de Natal não pagos, recomendou-lhe que os escondesse por saber do quilate da “fada má”. Mas ela, que não passava de uma miúda que nunca vira dinheiro, foi ao Brás e Brás e gastou-o em louças para o enxoval, tendo-as escondido em casa. Nesse mesmo dia a madrasta descobriu, partiu-as de raiva e pôs-lhe a trouxa à porta e a ela na rua. Assim, aos quinze anos, viu-se novamente abandonada… Então, só, sem família nem dinheiro, fez da rua a sua casa, de uma caixa de cartão a sua cama, da solidão a companheira. Viria a ganhar a companhia de um cachorro, companheiro de abandonos e desgraças, o seu parceiro dos restos de comida que procurava nos contentores, alguém que se lhe dava sem nada pedir, sem abandonos, sem se importar quem ela era. Mas até esse pouco (ou muito?) aconchego dado pelo cachorro lhe foi roubado quando o fizeram desaparecer, eventualmente levado para o canil. Questionou-se então se o problema não estaria em si, se não seria a culpada. O que teria de errado consigo?
Voltaria para casa da madrasta pela intervenção firme de uma amiga da família, com acordo de partilha do salário. A fábrica fechou, foi trabalhar para um café mas teve de deixá-lo porque a madrasta lhe impôs outra confecção, até a expulsar novamente de casa. Mais uma vez abandonada… Já com algum dinheiro, alugou um quarto junto do novo emprego, vindo ali a conhecer aquele que se tornaria seu marido. Casou e foi viver para o rés do chão da casa da sogra, mas também ela não lhe tornou a vida fácil, fazendo até desaparecer os cães que adoptara.
Já mãe de três filhos, viria a pedir o divórcio quando descobriu por uma filha que o marido a traia há muito. E este, em retaliação, deu uma tareia tão grande na filha, que lhe partiu a coluna (ainda hoje usa uma prótese de platina). Separou-se mas acabou perseguida e ameaçada com arma branca pelo ex-marido, tendo só encontrado sossego depois de recorrer à APAV e fugir para longe. Entretanto, tinha em si uma sensação de vazio, uma angústia que não lhe dava descanso: O que seria feito da mãe? Por onde andaria? Porque razão a abandonara? Ainda estaria viva? Imaginou como seria ver-se diante dela quando recorreu ao programa de televisão “Ponto de Encontro”, num desejo incontido de recuperar o amor maternal. Como seria ela? Iria encontra-la? Ao fim de alguns anos, conseguiram localizá-la. Contactou-a, restabeleceu a relação perdida, mas acabou por ser novamente vítima de uma mente manipuladora, sem escrúpulos nem princípios, cuja filosofia de vida é explorar o outro em seu proveito.
Apesar de ter sido vítima da madrasta, quando descobriu que vivia trancada em casa pelo sobrinho, espoliada da reforma, abandonada e à fome, protegeu-a e ajudou-a num final de vida complicado. À mãe, continuou a servir de pronto-socorro nos momentos difíceis ou que ela encenou como tais. Encontrou no seu marido atual a alma gêmea e, apesar das adversidades, fez dos seus filhos adultos livres e responsáveis, com princípios e valores, o seu mundo, o seu refúgio. Abandonada pela mãe e pela madrasta, acabou por servir-lhes de amparo em momentos difíceis. Mas nunca esqueceu. Nunca esqueceu aquele cachorro que lhe deu amor incondicional e cuja recordação guarda com muito carinho. Um coração grato aos companheiros de solidão. Por isso, pela sua lembrança e em sua honra, hoje tem cães e gatos em harmonia perfeita como parte da família e faz acolhimento de animais abandonados, porque ela sabe melhor que ninguém o que é ser-se abandonado. E faz tudo o que pode e não pode para os salvar, como ela se salvou neste mundo de abandonos, de homens e animais. Mas onde só os homens são capazes de abandonar alguém…