A maioria da malta estava lá, jovens de outrora, velhos de agora, em mais um encontro de curso, uma forma de romagem a amizades antigas mas perenes, para rever o seu “estado físico e mental”. Trinta anos depois de deixarmos Coimbra tomei a iniciativa de tentar reunir a malta num primeiro encontro, tarefa que se viria a revelar algo complicada pela dificuldade em localizá-los. Eram mais de sete dezenas… Mas, de contacto em contacto, com a indicação de um que sabia do outro e outro do outro, acabei por comunicar com a maioria deles numa primeira carta, já com data para o “almoço de curso”. A adesão foi excelente e o convívio ainda melhor. Mas, no reencontro, não consegui identificar alguns com a “fisionomia” alterada por uma grande careca, pelo físico “escondido” atrás duma barriga avantajada ou a cara disfarçada atrás de barbas grandes e bigodes farfalhudos, coisas que não tinham há trinta anos. No entanto, depois de falarem, lá estavam eles nos seus trejeitos particulares. Valera a pena. A partir daí, a rotina anual instalou-se, assumindo eu sempre a iniciativa e a responsabilidade porque, apesar de gostarem da confraternização, ninguém se voluntariou para a função. Deste modo, a iniciativa destes encontros continua a ser um encargo meu, que faço com muito prazer pelo prazer que tenho em rever os amigos.
Num desses encontros anuais uns quantos fomos na véspera e o Grilo recebeu-nos na sua “Lavra”, a propriedade agrícola que possui no vale do Mondego. Entre petiscos variados e garrafas de vinho de várias proveniências, contavam-se histórias, anedotas e vidas, tudo à mistura como é usual nestas patuscadas. No cruzamento das conversas o Sebastião falava do papagaio que comprara uns meses atrás e das suas habilidades: “Pois fiquem a saber que ainda só ando há meio ano a ensinar o meu papagaio a falar e ele já diz Olá”. A malta riu-se, brincou com a história e lá do canto o Souto e Melo não demorou a retorquir: “Ora, grande coisa. Até parece que o teu papagaio faz alguma coisa de extraordinário. Pois fica a saber que lá em minha casa tenho um bidé só há uma semana, nunca lhe ensinei nada e ele, desde o primeiro dia, diz: “Vista Alegre”. E foi gargalhada geral…
Encontros de curso são uma forma de rever amigos da juventude, recordar histórias, matar saudades, dos amigos, do que fomos, da nossa inocência e de uma santa ingenuidade. Por algumas horas até esquecemos os dramas, as dificuldades, a vida lá fora. E o tempo volta atrás. Mudamos o rosto, a barriga, o cabelo voou ou pintou-se de branco, a pele encarquilhou, curvaram as costas. E andamos devagar. Para ir, ignoram-se distâncias, custos, cansaços, filhos e netos. O que importa? As memórias. Reencontrar amigos de escola, de curso, é rever-nos a nós mesmos num tempo que existiu, que foi real mas se foi, mas onde é importante regressar de tempos a tempos, em romagem, ao encontro de velhas histórias comuns. Para que não se percam.
O Óscar era o colega à volta do qual a turma se reunia, porque tinha sempre uma boa história que sabia contar como ninguém. Para lhe dar realismo, colocava-se no meio dela como se tivesse acontecido com ele, quando na realidade na maior parte das vezes não passava de mais uma anedota. Entrou na Escola Agrícola comigo e, enquanto eu não passava de um jovem imberbe, ele já era homem casado e pai de uma menina, não sei se por ter “metido a pata na poça” antes do tempo (e nesse tempo não havia outra saída senão “dar o nó”) ou para ter “mandato legal” para o fazer. Fora das aulas, eram mais que muitos os que lhe faziam companhia não só pela sua boa disposição, pelas histórias e anedotas que tinha sempre para contar e pelo prazer de usufruir da sua amizade. Uma manhã chegou à Escola afogueado. Como de costume, o grupo rodeou-o e ele desabafou: “Nem queiram saber o que me aconteceu. Ontem o João foi lá a casa e, depois de conversarmos um bocado, perguntou-me se tinha alguma coisa para beber. Como estava a trabalhar, disse-lhe para ir à cave, como era costume. E ele lá foi, mas eu sabia que o vinho engarrafado acabara. Passado um bocado regressou e disse-me que o vinho era bom. Encontrara uma garrafa. Estranhei, mas talvez me tivesse escapado. Mais tarde foi-se embora e quando me deitei ainda ia a pensar na garrafa. Hoje de manhã, mal me levantei, fui à cave e lá estava a garrafa em cima da mesa. Olhei o rótulo e fiquei chocado: “Ácido clorídrico”. C’um caneco, o João matou-se. Fui a correr a casa dele, que é ao fundo da rua e, quando toquei a campainha, foi ele que me apareceu à porta. – Que cara é essa, perguntou-me. – Tu estás bem, estás mesmo bem?, perguntei-lhe, sem acreditar que não tinha sinais visíveis de mal estar. – Estou. Mas porque perguntas com esse ar aflito, quis saber. – Sabes o que bebeste ontem à noite? – Sei, respondeu-me. Foi vinho. – Não foi nada, foi ácido clorídrico, esclareci eu. – Ah, bem me parecia que alguma coisa não estava bem. Então foi por isso que, quando esta manhã dei um “p…um”, queimei as cuecas” … E foi a risada do costume.
Rever os amigos é reencontrar peças que se encaixam, experiências que nos formataram. São os amigos da saudade, para os quais só existem reencontros. Podemos ficar anos e anos sem os ver, mas isso nada muda, porque o tempo não apaga nossa amizade. Como o vinho do Porto, quanto mais velho, melhor. E, na alegria do reencontro, há a ansiedade de um abraço forte, como para garantir que nada do que nos une se perdeu. E voltamos atrás no tempo, à ilusão própria dos jovens que fomos…