Fechado para balanço…

O final do ano é o momento ideal para avaliar os resultados de mais trezentos e sessenta e seis dias de vida e, por isso, no dia trinta e um de Dezembro fiz o mesmo que qualquer estabelecimento comercial faz (ou fazia): Fechar para balanço. No entanto, não me socorri do contabilista senão iria falar-me em ativos e passivos, património e resultados, credores e devedores, matérias primas e amortizações e, com franqueza, não estava para aí virado. Também estava em desvantagem em relação a qualquer casa comercial porque elas podem fechar a porta para fazer o balanço mas eu, não. É que o diabo da minha “máquina” trabalha vinte e quatro horas sobre vinte e quatro (e ainda bem) e, por isso, estou naquilo que os contabilistas chamam de “inventário permanente”.

Pensei começar pelo lado financeiro mas, com franqueza, será que valia a pena avaliar os “resultados negativos”, os “devedores” que já deixaram de atender o telemóvel há muito tempo e os amigos (falsos) que me “cravaram”, fazendo com que perdesse o dinheiro e o amigo? Claro que nem precisava de perder tempo com a balança e o balanço para confirmar que estou mais pobre porque os “ativos” diminuíram de forma vertiginosa. Quem o não é?

Importante a verificar no ano que findou é que completei mais um de vida e terei menos um para viver (é a história do copo meio cheio ou meio vazio…). Só por isso, tenho que estar muito agradecido pois, pelo caminho, partiram familiares, amigos e muitos conhecidos, tantos deles muito mais novos do que eu, “abatidos” ao meu “património” pessoal. Mas é uma alegria enorme continuar a ter comigo a minha mãe, já para além dos noventa mas com saúde, qualidade de vida e mente viva de fazer inveja a qualquer um, a Luísa com todos os seus problemas mas que continua a fazer-me companhia e os filhos e suas companheiras. E até a nossa cadela “Diana” se tornou cada vez mais uma companhia, ao ponto de já não saber quem é que faz companhia a quem. É que ela só está bem quando alguém está por perto. E, por isso mesmo, tem o “trabalho chato” de se estender ao comprido na sala e ressonar alto e em bom som para “darmos conta” que está presente. Posso contar com ela. Podia pedir mais? Não porque, nas coisas verdadeiramente importantes da vida, o ano deu-me tudo. Obrigado, Bom Deus. Assim, prefiro nem falar na paciência que é preciso ter para aturar certas coisas e pessoas mas, mesmo isso, espero que entre como compensação na “amortização” dos meus pecados. Ao aturarem-me a mim, outros dirão o mesmo…

Em Itália, menos preocupados com o balanço e mais com o “aliviar” da carga, os italianos foram incentivados a lançarem pela janela fora os tachos velhos e os vasos rachados ao soarem as doze badaladas, num sinal de que nos devemos desfazer das coisas menos boas do ano que acaba, atirando-as para o rol do esquecimento, para dar lugar às novas. Será mesmo isso que devemos fazer ao mudar de ano? O ano velho trouxe-nos problemas de saúde, ressentimentos, faltas de dinheiro, fracassos, injustiças, desemprego, perda de alguém muito querido, hipotecas, entrega da casa ao banco e muitas outras coisas menos boas. E o novo, só pelo facto de mudarmos de trinta e um para o dia um, vai trazer-nos saúde, dinheiro e amor? Sucesso, fama e glória? Poderemos acreditar que, por um “decreto de esperança” a partir de Janeiro seremos todos felizes pois só haverá paz entre os homens, justiça, riqueza, solidariedade e tudo o mais?

As mudanças não ocorrem só porque acabou o ano de 2016 e começou 2017, nem por atirarmos pela janela fora os trastes velhos e, muito menos, por manifestarmos um conjunto de desejos, sonhos e promessas a alcançar no ano que começa, e que repetimos sempre no final de cada ano. As verdadeiras mudanças só ocorrem se “nós mudarmos”, se formos capazes de nos libertar de preconceitos que nos “amarram” e recuperar valores que deixamos escapar.

Ao soarem as doze badaladas da noite de fim de ano ou de uma outra noite qualquer, deveríamos ser capazes de seguir os conselhos do escritor moçambicano Mia Couto, proferidos na oração de sapiência que fez numa universidade de Moçambique. Nessa brilhante oração defendeu que “não podemos entrar na modernidade com o atual fardo de preconceitos”. E que, “à porta da modernidade, precisamos de nos descalçar”. Por analogia, eu substituo “modernidade” pelo “Novo Ano”. E diz ele, que encontrou “sete sapatos sujos que precisamos de deixar na soleira da porta dos tempos novos”, isto é, na soleira da porta do Ano Novo. São eles:

“Primeiro sapato: A ideia de que os culpados são sempre os outros”.

“Segundo sapato: A ideia de que o sucesso não nasce do trabalho”.

“Terceiro sapato: O preconceito de quem critica é um inimigo”.

“Quarto sapato: A ideia de que mudar as palavras muda a realidade”.

“Quinto sapato: A vergonha de ser pobre e o culto das aparências”.

“Sexto sapato: A passividade perante a injustiça”.

“Sétimo sapato: A ideia de que, para sermos modernos, temos de imitar os outros”.

Sete sapatos que precisamos deitar fora, sete lições de vida, sete atos de contrição. Cada um de nós deve olhar para a sua “sapateira” e perceber o que ali tem a mais. Sermos capazes de nos libertar desses sapatos sujos é muito importante para crescermos, ainda que tenhamos de caminhar descalços. Mas de alma lavada…

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